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Notícias / Comportamento

Conheça a história de superação do casal surdo que criou três filhas em Cuiabá

Da Redação - Isabela Mercuri

São 18h15. A entrevista havia sido marcada para as 18h30. Camila, a filha de José Edson e Mirene, com quem tínhamos conversado, ainda estava a caminho, então entramos na residência do casal. Silêncio. Desde o início é possível perceber a nossa completa falta de habilidade, como quando estamos em outro país. Ali, não é o português que se fala. Sem uma intérprete, somos apenas estrangeiros tentando nos comunicar com sorrisos, olhares e gestos tímidos. Quando a filha finalmente chega, a agonia acaba, e sua habilidade com a língua materna – a de sinais – joga na nossa cara, mais uma vez, a importância da inclusão.



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José Edson Faleiro, 53, e Mirene de Souza Faleiro, 49, são goianos, e são surdos. Ele, de nascença. Ela, desde os três anos de idade. Na casa colorida, cheia de porta retratos, é possível perceber, com os outros quatro sentidos, a felicidade dos quase trinta anos de casamento. Os dois são pais de Melissa Souza Faleiro, 23, Kamilla Souza Faleiro Marques, 26, e Maysa Souza Faleiro Correa, 27, todas ouvintes.

Melissa (esq.), Kamilla, Mirene e José (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

A entrevista começa com o auxílio da filha do meio, que é formada em administração, mas trabalha como intérprete na UFMT. Por meio de suas mãos, Mirene nos conta como os pais se conheceram: “Eu morava em Goiânia, e vim com minhas irmãs, de férias, para Cuiabá passear. A gente fazia um curso, e alguém me chamou, e disse: ‘Vamos lá ver, tem meninos surdos ali, vamos ali conhecer’. Depois, minha irmã falou pra ele: vamos lá na minha casa pra vocês conversarem mais...”. E quando eu conheci o José foi amor à primeira vista”.

Depois do primeiro encontro, entre idas e vindas de Goiânia a Cuiabá, o namoro durou cinco anos. “Eu não ficava preocupada em casar não!”, afirma Mirene. “Mas depois de cinco anos eu noivei, a gente casou, aí eu engravidei depois de um ano. Tivemos dificuldades financeiras no casamento, e Deus sempre cuidava da gente, cuidava da minha família e das minhas filhas, e eu agradeço a Deus”.

Antes de encontrarem o amor de suas vidas, Mirene e José namoraram outras pessoas, inclusive ouvintes. Mas não deu certo. “Não tinha comunicação... só tinha beijos, mas não tinha comunicação”, conta José. “Não queria casar com ouvinte. Porque não sabia o que ele ia fazer, podia passar a perna em mim, então preferi casar com uma surda mesmo”, brinca.

Desde o início do namoro, Mirene e José sempre se comunicaram por meio da língua de sinais, que aprenderam na infância. Ele, que tem outros dois irmãos também surdos, teve acesso à língua mais cedo. Para ela, foi apenas aos oito anos de idade que conseguiu sair do silêncio, quando entrou em uma escola.

“A minha mãe, aos três anos, teve uma doença e ficou surda”, conta Kamilla. “Minha avó e algumas pessoas falam que foi meningite, outros que foi outra doença... mas pelo que eu sei, ela teve essa doença, que poderia ser curada, mas o pai dela não deixou fazer o tratamento, porque era uma tia que tinha dinheiro que ia ajudar. A mãe deixou, mas o pai não. E ela foi ficando quieta, perdendo a audição... e só ficava quieta. Alguém podia tê-la ajudado, mas a família a via como uma pessoa descartável, não conversava, e ela foi deixada de lado”.

Também por este motivo, poucos familiares aprenderam a língua de sinais. As filhas, no entanto, a tem como língua materna. “Desde que nós éramos pequenas ela já fazia os sinais para mamadeira, para comer”, conta Kamilla. “E a criança percebe quando os pais não ouvem. Um dia, quando a gente morava na outra casa, estava tudo fechado e começaram a bater na porta. Minha filha mais velha começou a olhar, e isso chamou minha atenção. Fui ver e tinha gente na porta. Ou seja, a criança entendeu que os pais eram surdos, e me avisou de alguma forma”, completa Mirene.



Com as filhas pequenas, Mirene contava com a ajuda da própria mãe, nos primeiros meses, e com uma intérprete depois, que auxiliava quando precisavam ir ao médico. Uma irmã de José também sempre ajudou, principalmente quando a mais nova, Melissa, passou por problemas de saúde. “Ela nasceu normal, depois teve uma febre muito alta e teve meningite, e ficou com sequelas. Ela teve convulsão, epilepsia, e ficou com sequelas intelectuais. Pegou também infecção no hospital, sempre ficou muito na UTI, internada. Então hoje ela é 100% dependente dos meus pais”, conta a irmã.

Melissa, hoje, é aluna da APAE e trabalha no Hospital São Benedito. Quando ela era pequena, se José e Mirene estavam em apuros, iam até o orelhão e ligavam a cobrar para a tia. A mensagem que vinha antes da ligação era o sinal de que precisavam de ajuda.

Apesar de serem ouvintes, as três meninas cresceram com dificuldades na fala, e também contaram com a ajuda dessa tia para serem corrigidas e aprenderem corretamente a língua portuguesa. Mesmo assim, chegaram a sofrer preconceito. Quando iam à casa de outras pessoas, por exemplo, era comum que brigassem com elas, acreditando que seus pais não iriam perceber. Na escola, chegaram a ser chamadas de ‘mudinhas’, ao que Kamilla respondia com veemência: “E você, que tem pais ouvintes?”.

Mesmo com as dificuldades, José e Mirene sempre trabalharam. Ele foi cortador em uma gráfica por 36 anos, e ela é jovem aprendiz da Ambev. Os dois sabem ler e escrever apenas o básico em português.  “O português pros surdos é muito difícil. Se pra gente já é, imagina? A minha mãe escreve melhor, mas meu pai é bom na matemática, e minha mãe não. Então é uma troca”, explica Kamilla. “Mas eles conseguem escrever por WhatsApp algumas palavras”.

Hoje, com as filhas crescidas, eles conseguem ter muito mais ajuda. Quando vão ao médico ou ao banco, por exemplo, fazem ligações por vídeo para elas, para que possam traduzir o que for necessário. São, inclusive, essas coisas mínimas do dia a dia que mais incomodam o casal. “O que é mais difícil, por exemplo, no meu trabalho. Quando eu entrei, eu não entendia muito. Meu colega me ajudava até eu aprender. Eu via que tinha algumas dificuldades, e tinha que ficar apontando [as coisas]. Pra ir ao banco, como eu vou? Ninguém sabe conversar comigo... Como eu vou depositar meu dinheiro? Meu amigo que trabalhava comigo me ajudava, que era surdo também. Eu ficava olhando como era, e aprendi como fazia”, lembra José.

O preconceito e a discriminação também foram companheiros do casal durante a vida. Cada um tem uma história que marcou. Para José, foi quando as pessoas da gráfica ficavam o chamando de ‘mudinho’. “Eu cheguei a falar: muito cuidado, porque quando você tiver o seu filho, ele também pode nascer com deficiência. E dito e feito. O filho dele nasceu com deficiência e ele veio pedir desculpas pra mim”, lembra.



Para Mirene, o mais marcante foi quando a filha mais velha, Maysa, teve um problema na escola, e a professora mandou chamar a mãe. “Fui até lá, a professora olhou, e a minha filha que tinha que interpretar. Mas ela falou: Ah, ela é surda? Então não precisa. Me fez de boba”.

Mesmo com todas essas situações, a família segue perseverante. José, hoje, está desempregado e tem um problema na coluna, o que o impede de voltar a trabalhar como cortador. Para os ouvintes, eles têm um recado: “Nós somos surdos, mas não somos inferiores, somos iguais aos ouvintes. Temos os mesmos direitos. Tem surdos que escutam, fazem faculdade, então não somos menores que eles. Somos iguais, só não escutamos”.
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