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Notícias / Comportamento

“Quem não é imigrante nesta terra de meu Deus?”, questiona venezuelano que vive há dois anos no Brasil

da Redação - Isabela Mercuri

Há alguns anos, Victor Lugo vivia com a esposa e seus filhos em uma casa confortável. Tinha um carro e uma caminhonete e passava todos os finais de semana na praia, aproveitando o mar do Caribe. Naquela época, trabalhava como chefe de uma empresa de transportes, seus filhos mais velhos estavam formados e o mais novo cursava medicina.

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“Eu pensei que já tinha a vida realizada”, contou ao Olhar Conceito ele, que há dois anos teve que mudar para o Brasil, depois de ver tudo o que construiu, desmoronar. Começou com a mudança nos preços dos produtos. Aos poucos, eles já não se encontravam nas prateleiras, e quando ele pegou uma parasitose no estômago, teve que ir para Roraima para fazer o tratamento, em setembro de 2017. “Melhorei bastante, comprei os remédios, fiz mercado e voltei à Venezuela. Mas as autoridades já estavam implicando... é inexplicável. Já estavam uns contra os outros”, lembra.

Ao tentar passar pela fronteira, os militares lhe disseram que teria que deixar parte das compras com eles. Depois de muito insistir, Victor conseguiu passar, mas ficou em seu país apenas três meses, fez as malas, e veio embora com Rossbeli, sua esposa. A filha foi para a Costa Rica, o mais novo ficou para terminar os estudos, e o mais velho já vivia no Brasil.

Victor e Rossbeli foram novamente para Roraima, com a esperança de encontrar seu filho. Ao chegar ao centro de refugiados, no entanto, havia muita gente. Sem telefone, eles não conseguiam achar o rebento, e começaram a trabalhar para se manter no país. Ele passou a ser ajudante de mecânico, mas, assim que conseguiu uma carteira de trabalho, foi dispensado – o patrão não queria assinar.

Com o processo de interiorização da Organização das Nações Unidas (ONU), o casal conseguiu sair da cidade. O destino, no entanto, era São Paulo. “Quando o avião parou, parou aqui e me chamaram. Eu nem sabia”, lembra.

Em Cuiabá, foram abrigados pelo Centro Pastoral do Imigrante, onde viveram por três meses. Ele logo conseguiu um emprego no Detran e, depois, passou a ser um ‘faz-tudo’ no Colégio Master, onde trabalha até hoje. A esposa, Rossbeli, é apresentadora de um programa de músicas latinas em uma rádio comunitária (mas ainda sem salário fixo).

Com o primeiro salário, Victor conseguiu comprar um telefone e encontrou seu filho. Descobriu que tinha um neto brasileiro vivendo em Blumenau, para onde o primogênito quer que ele se mude. “Ele falou para mim: ‘eu tenho certeza de que aqui se paga melhor, Cuiabá é muito caro!’. E é verdade, tudo é caro. Eu lembro que em Roraima o quilo do arroz custava R$ 0,80. Eu, com cinco reais, comprava linguiça, pão, arroz, e ainda dava para comprar um suco. Então jantávamos.  Aqui, com cinco reais... se come um salgadinho. E agora com o aumento da carne...”, lamenta.

Costumes

No Natal de 2018, Victor e Rossbeli já viviam em Cuiabá, em sua kitnet. Os dois passaram a ‘meia noite’ sentados na varanda, sozinhos. Compraram coisas para comer, mas a saudade da família era forte. “Aqui é muito diferente. Eu ainda não fiz esse tipo de amizade com os brasileiros que me convidem para o final de ano. Nós, ano passado, estávamos aqui os dois, sozinhos. Apesar de que compramos umas coisinhas, mas não é igual. Faz falta. A família, o calor da família faz falta. É triste estar longe”, lamenta o venezuelano.

E não é só a solidão que lhe estranha, e nem mesmo somente a língua, que já aprendeu, mas que teve muita dificuldade no início. Os costumes também lhe parecem muito diferentes. “Por exemplo, na Venezuela, se eu pego um ônibus, o ônibus não sai antes que eu me sente. Ou não passa um carro e joga água em você... lá eles freiam e esperam que você passe”, explica. “Aqui na parada de ônibus, mesmo se há mulheres, os homens entram primeiro, não deixam as mulheres subirem. Eu subo por último. Que maneira de ser cavalheiro é essa? Tem que esperar subir as mulheres, crianças...”, completa.

Certo dia, convidado por uma família brasileira para jantar, também lhe foi estranho a forma de recepção. “Eles falaram: ‘pega aí’... como assim? Porque em Venezuela, se você vai comer em uma casa, o dono da casa que vai te servir, porque ele é que sabe a quantidade de comida que tem em sua casa”, conta, rindo.

Depois de dois anos, ao entender o jeito de ser por aqui, no entanto, ele se sente feliz. “Como diria Ariano Suassuna, que descreve o Brasil como duas nações: a nação do político e das leis, e a nação do povo. O brasileiro alegre, hospitaleiro, irmão. Encontrei-me com esse tipo de pessoas aqui, brasileiros de bom coração”, comemora.
Dentre estes ‘irmãos’ está, por exemplo, a dona da casa onde ele mora, que lhe deixou mudar-se mesmo sem pagar, já que ainda não tinha recebido o primeiro salário, e o dono da mercearia vizinha a sua casa, que logo que ele chegou, lhe convidou para jogar futebol.

O lado ruim, no entanto, ele enxerga nos políticos. “Tem muitos deputados e pessoas do governo que reclamam dos imigrantes... Quem não foi imigrante nesta terra de Deus? Se todos vêm de algum lugar?”, questiona. “Essa terra estava só. Quando vieram aqui os europeus, e quando chegaram à Venezuela os espanhóis... eram imigrantes iguais. Ninguém lhes pediu documentos, já chegaram e não colonizaram, mas impuseram”, finaliza.
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