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Notícias / Comportamento

Cecília Neves fala sobre menages à trois, ciúmes e grileiros dos relacionamentos

Especial para o Olhar Conceito - Cecília Neves

“Bom, eu estive pensando e acho que eu aceito namorar ela também”, ela disse pelo telefone. A voz dela era grossa e meio rouca. Ela disse isso a Nikolai, pouco tempo depois de os dois terem terminado. Mas ela simplesmente não conseguia aceitar essa separação. A proposta era simples: Como Nikolai não queria abrir mão de seu novo relacionamento, ela aceitava manter a namorada, desde que ela pudesse manter esse status também.

Ela era engraçada, essa menina. Vamos chamá-la de Gaia. Não vou descrevê-la fisicamente, porque sua personalidade, ao mesmo tempo em que é seu ponto forte, é seu ponto fraco. Explosiva e covarde, ciumenta e orgulhosa, mas disposta a deixar o amor próprio de lado pelo que achava que queria. “Eu aceito namorar ela também”, foi o que ela disse. Mas a verdade é que ela não aceitava nada disso. Sentia um ciúmes incontrolável, uma raiva corrosiva e chegou a dizer que iria se matar várias vezes. “Eu aceito namorar ela também”. Não. Ela não aceitava namorar ninguém mais. Mas a verdade é que o sentimento de perda é desesperador. Ao contrário do medo, não te paralisa, mas te torna o agente de coisas que antes seriam impensáveis.

Gaia jamais gostou da ideia de menages à trois. A simples imagem de uma terceira pessoa tocando aquele que lhe pertencia a deixava ensandecida. A ideia de compartilhar o sexo que era seu por contrato verbal era inaceitável. O de compartilhar o relacionamento e todos os bônus que vinham com eles então... Não admira que ela tenha ameaçado se matar tantas vezes.

Quando ela sugeriu o menage à trois permanente, a resposta de Nikolai foi automaticamente “não”. “O que que foi, ela não vai deixar, é?”, ela perguntou, meio sarcástica, meio provocando, mas no fundo, sentindo que o desespero ia voltar. Na época, sejamos sinceros, não achei graça nenhuma dessa história. Na época, acho que era mais covarde que Gaia. Ela tinha medo de mim e eu dela. Olhando novamente esse teatrinho tragicômico que se passou como corriqueiro, acho algumas coisas engraçadas, curiosas e interessantes.

Mesmo depois do término, Gaia sentia que ainda tinha a posse dos sentimentos de Nikolai. Ele devia se importar, mesmo que não quisesse mais ficar com ela, em respeito “aos velhos tempos”. Ao mesmo tempo em que não abria mão de sua fração de posse, não negava a minha suposta parte. “Ela não vai deixar, é?”. Eu tinha, de certa forma, alguma autoridade ali. E na minha cabeça, aquela luz de neon vermelha, como as das lanchonetes dos anos 50, piscando sem parar, mostrando a pergunta palavra por palavra: “Desde quando alguém tem a posse de outra pessoa, mesmo que metaforicamente?”.


(Foto: Alexander Von Fäckl Barockart) 

Sinceramente, eu queria chegar e dizer que isso é um absurdo, que ninguém é de ninguém, que o mundo que se foda e coisas do tipo. Mas pensando bem, se você observar o comportamento alheio, vai ver sinais de que nos sentimos donos dos nossos companheiros, mesmo sem escritura. Somos grileiros nos relacionamentos.

“Você vai sair com quem?”, “Se você não tirar esse comentário agora...”, “Por que ela fica te ligando toda hora?”, “Você está conversando com quem?”, “Por que você demorou tanto?”, “Você está mentindo”. São coisas que dizemos cotidianamente, às vezes sem nem mesmo percebemos, que mostram como nos sentimos donos, no direito de ter explicações, de exigir satisfação, no direito de mandar e achar ruim se não está sendo do jeito que a gente quer.

Sinceramente, não vou condenar esse tipo de comportamento. E o fato de não condenarmos, de darmos razão a essa voz, talvez uma das mais desafinadas e grosseiras de todo o nosso repertório, é curioso. Agora deixo de lado o poliamor e relacionamentos abertos, onde o ciúmes é sim existente, mas de outra forma, com outras variações e limites.

 Em uma sociedade onde o relacionamento padrão é a dois, qualquer tipo de dois (hetero, homo, trans, bi, etc), o ciúmes é protegido. É protegido porque não queremos perder nossa voz de comando, nossa voz desconfiada, a voz de Gaia, aquela que insinua e, quando não dá certo, manda, faz chantagens e diz que vai embora.

Em um mundo onde o ciúmes é protegido, muitas vezes nos rebelamos. Mas também nestes casos, como acontece com muitos ativistas, perdemos as forças e até mesmo a vontade de lutar. Ficamos em uma espécie de letargia e depois incorporamos o que tanto combatiamos. Grita comigo, eu quero que você faça isso. Se você gritar e dizer que estou errada, significa que ainda se importa. E é bom saber que ainda tem alguém que se importa.

Meus ouvidos estão atentos ao menor sinal de barulho.

*Cecília Neves é escritora, curiosa sobre o sexo, relacionamentos e idiossincrasias humanas. Ela escreve no Olhar Conceito aos domingos e quer que você compartilhe experiências pelo e-mail cecilia.neves25@gmail.com. Para acompanhar mais textos de Cecília, curta a página “Era do Consentimento” no facebook clicando aqui.
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