Imprimir

Notícias / Perfil

Do alto do morro, o santo a nos olhar: Em tempos de Copa, Cuiabá luta para preservar identidade cultural

Da Redação - Marianna Marimon

Do alto do Morro da Luz, a igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito assiste imponente, as mudanças do tempo, e se sobrepõe à paisagem de Cuiabá como um marco histórico para lembrar as origens da capital de Mato Grosso, que começou a ser desbravada pelos capitães do mato. A igreja construída por volta de 1730 é um símbolo da resistência ao tempo, ao isolamento, e a todas as adversidades que uma cidade nascida no centro do país, em meio ao mato grosso que a envolvia, banhada pelo córrego da Prainha estava fadada a vivenciar. É o símbolo da tradição, da história, da identidade de Cuiabá. E quantos personagens sentaram-se em suas escadas e pediram ao santo negro que atendesse suas orações?

Leia também: Musicista, escritora, historiadora e poetista: De Maria Benedita Deschamps Rodrigues para a eterna Dunga

A história da igreja remonta ao garimpo. A Prainha era conhecida como “Lavras do Sutil” e a terra era banhada pelo dourado do ouro que resplandecia ao sol quente do cerrado mato-grossense. São Benedito ganhou um ‘puxadinho’ ao lado da igreja de Nossa Senhora do Rosário, pois, os negros escravos começaram a realizar festas clandestinas em sua homenagem. Com a popularidade do santo, a igreja o incorporou e também a alta sociedade. Agora, o santo ‘pretinho’ como diziam, se tornou um dos símbolos mais marcantes daquela recém-nascida Villa Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá.

A Villa Real nasceu maldita, oriunda do ouro e do sangue, do trabalho escravo, das invasões e disputas por terras. Mas à despeito de todas as expectativas, Cuiabá cresceu, prosperou e se fixou como um reduto no Centro Oeste do Brasil, com cabeças que aqui nasciam e marcaram tempo, época e perpetuaram sua identidade como um centro pensante, cultural e artístico.

Nessa empreitada temos tantos nomes, muitos que permanecem e outros que ficam apenas como lenda. Mas tivemos grandes personalidades como Dom Aquino Côrrea, José de Mesquita, Estevão e Rubens de Mendonça, Dunga Rodrigues, todos da Academia Mato-grossense de Letras.

E além das letras e da música, tivemos lendas como Mãe Bonifácia, que ajudava os negros a escaparem para um quilombo escondido na mata atravessando um córrego da cidade, ou então Maria Taquara a primeira mulher a usar calças na cidade e que também era mulher da vida, e Zé Bolo Flô que se tornou ícone por andar com um saco cheio de poemas e cantarolar canções, compor com ajuda de estudantes e caminhar à ermo pela cidade.

Outros caíram no esquecimento, mas retrataram com maestria a realidade de Cuiabá, os filhos do garimpo, a tradição, somado ao distanciamento com relação aos grandes centros do país. Ricardo Guilherme Dicke sem qualquer modéstia é o maior escritor de Mato Grosso e morreu afogado entre o esquecimento da vida, das próprias palavras e memórias.

Artista Walmir Leite retrata a antiga Cuiabá de sua memória em pinturas saudosistas


Wlademir Dias-Pino que trilhou história em Cuiabá e é um dos maiores artistas visuais do mundo, citou Estevão de Mendonça, o historiador e escritor, que dizia: “Morrer em Cuiabá é morrer duas vezes, porque é um silêncio aterrador”. E há também os boêmios, que como Wlademir estiveram à frente do seu tempo e despontam toda a contemporaneidade, modernidade, ideias criativas e mentes brilhantes que nasceram no isolamento do cerrado como Silva Freire, o diretor de teatro Chico Amorim e seu parceiro, o comediante Liu Arruda, que recuperou a autoestima do cuiabano ao zombetear de suas particularidades.

E temos ainda nomes que emergem como o já saudoso poeta e escritor Antônio Sodré que é irmão do pintor icônico Adir Sodré. Os meninos do Vanguart que invadem o Brasil com o amor quente que corre nas veias, e a trupe do Caximir na década de 80, que aterrorizava Cuiabá com muito rock’n’roll, artes cênicas, performances e poesia.

São tantos nomes que citar apenas esses é desmerecer toda uma população que tem em suas veias, o correr do ouro, que até hoje nos remete a sensação de estarmos suspensos no tempo e no espaço, com tanta memória esquecida, com tantos personagens desconhecidos, com tanta história a ser recuperada.

Cuiabá é uma cidade extremamente rica, e não estamos falando dos poderosos, mas sim, daqueles que no caminhar calmo do dia a dia, em que tantas vezes olharam para o santo ‘pretinho’ lá no alto do morro à abençoar a cidade e pedir que um dia, aqui possa ser um lugar de todos. Não podemos escolher aqueles que irão se sobrepor na história e na cultura, mas devemos zelar pela memória coletiva da cidade, falar mais de seus ícones, rememorar suas memórias, contar os causos e acasos cuiabanos.

Nossos monumentos não são de mármore, mas de carne e osso, daqueles que fazem a cidade com suas próprias mãos e não se esquecem do amor que tem pela terra mais quente do Brasil. Em meio a tantas mudanças, com intervenções e obras da Copa do Mundo, Cuiabá ficou esquecida. Sua identidade cultural e histórica não são consideradas em meio a tantas mudanças. Ricardo Guilherme Dicke dizia que um povo sem literatura é um povo sem memória.

O moderno e o tradicional contrastam em Cuiabá, que luta para preservar sua memória


E a sua memória é composta justamente por todos estes símbolos culturais e históricos. A cidade vive através de suas histórias, de suas lendas, de sua música, literatura, artes cênicas, cultura, personagens. A cidade vive através das pessoas que vem e vão e por todos os signos que remontam a esta memória coletiva e afetiva.

Lá do alto do Morro, talvez o santo ‘pretinho’ esteja a pensar sobre estes tempos loucos em que vivemos, com saudade de quando a terra se acalmou depois da corrida pelo ouro, com saudade das cadeiras na varanda no fim de tarde, de uma conversa calma embaixo de um pé de manga, ao lado do Rio Cuiabá para ver o sol se pôr em todo seu esplendor. Com saudade das árvores que banhavam de sombra o calor interminável, e saudade de tempos mais simples, quando se podia andar pelas ruas, como os andarilhos e boêmios que marcaram essa história.

Talvez, o santo ‘pretinho’ tenha saudade dessas memórias todas, e olhe com um semblante preocupado para a cidade que cresce diante da igreja que permanece inerte desde 1730. E os carros seguem despreocupados, sem perceber que a nossa história está contida em cada dia e em cada escolha que fazemos. Talvez, o santo ‘pretinho’ esteja torcendo para que os cuiabanos possam insurgir como as “Lavras do Sutil” e reivindicar toda esta memória que está sendo rejeitada em tempos de modernidade e brevidade. Cuiabá é cidade antiga, é filha do garimpo, tem a dor e o ouro a correr pelas veias, mas precisa de cada um dos seus cidadãos para sempre se lembrarem, como deve ser a cor dos sonhos, da terra quente, da paisagem histórica, da luta pela preservação de nós mesmos.
Imprimir