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Notícias / Comportamento

O corpo como ofensa: Sobre a peladona do Villa Mix e a Marcha das Vadias

Especial para o Olhar Conceito - Cecília Neves

O corpo humano. Nu. Ofensivo? Erótico? Natural? Desde muito tempo, as pessoas são retratadas nuas, espelhando nestas pinturas, esculturas e fotografias um padrão de beleza que muda ao longo do tempo. Dependendo da época, estas obras, assim como o que foi retratado, foram condenadas. Em outras, amplamente elogiadas. Mas o que está acontecendo com o nosso tempo agora?

Tomemos como exemplo dois casos: a da estudante Priscila Lopes, apelidada pela mídia como “peladona do Villa Mix”, e a marcha das vadias, que está marcada para 07 de junho em Cuiabá. Para aqueles que não estão familiarizados com a primeira história: Certo dia, em um festival sertanejo chamado Villa Mix, uma moça bebeu algumas doses de whisky e foi convidada para ir ao camarote do cantor Gustavo Lima.

Uma foto que vazou na internet mostra que ela talvez tenha ficado pelada no camarote. A estudante afirma que colocaram algo na bebida dela. Depois, ela saiu do ambiente fechado e, em uma área externa, tirou novamente a roupa. Um grupo de homens a filmou e o vídeo circulou o Brasil. Tanto que o próprio Gustavo Lima comentou o caso.

Agora, a menina está processando o cantor para ser indenizada em mais de cinco milhões e, para isso, terá que desembolsar 50 mil. E, sinceramente, corre o risco de não só não ganhar nada durante o processo, mas também de ficar com uma dívida significativa. E por que tudo isso? Porque ela ficou nua. Fez um gesto obsceno? Pediu pra ser filmada? Merece tudo o que fez? Sério mesmo, população?


No Egito Antigo, as crianças viviam nuas até o início da puberdade, homens costumavam andar com o torso descoberto, mulheres costumavam fazer espetáculos nuas. (Foto: Músicos e dançarinos no afresco no túmulo de Nebamun)

Então quer dizer que, porque ela tirou a roupa em um momento de possível embriaguez, merece ser tratada de forma “rude”, pra não dizer outras coisas? Por que, depois de milênios em contato com a nudez, tendo nossos próprios corpos como referência, o nu continua sendo uma ofensa tão grande assim?

Alguns justificam suas opiniões dizendo que ela é uma prostituta, ou “vadia” ou “vagabunda”. É claro que ninguém, além dos parentes e amigos próximos, sabem como ela realmente é. Ninguém pode ditar parâmetros para definir a personalidade de Priscila Lopes. Mas hipoteticamente, vamos supor que ela realmente tenha trabalhado como profissional do sexo. Qual o problema? Essa é uma das profissões mais antigas existentes na humanidade e, só por conta disto, ela merece ter suas fotos e vídeos expostos, ser agredida verbalmente inúmeras vezes e ter sua dignidade comparada a de um criminoso hediondo?


(Em algumas regiões da Grécia Antiga, tais como Minoa e Esparta, a nudez era muito bem aceita. Os soldados espartanos combatiam nus. Também nos Jogos Olímpicos os atletas competiam nus (Foto: Laocoonte e seus filhos de Agesandro, Atenodoro, Polidoro. Atualmente exposta no museu do Vaticano)

No caso, esta exposição talvez possa ser considerada como ato obsceno (artigo 233 código penal). Mas cabe às autoridades de fiscalização públicas entrarem ou não com uma ação, o que ainda não aconteceu. Ou talvez o caso não seja digno de processo por aquele local ser uma área restrita. De qualquer forma, ela não foi processada por conta disto e também não cabe a mim determinar sua culpabilidade.

Mas mesmo que fosse, considerando todos os casos de nudez no geral, não só no de Priscila, por que o corpo humano continua, mesmo no século XXI, sendo tão ofensivo? Por que alguém se sente tão lesado ao ver o corpo de outra em certas ocasião, e, em outras, sente coisas completamente diferentes (se é que me entende)?


Sessão de fotos da Marcha das Vadias Cuiabá, 2014. (Crédito: Organização da Marcha das Vadias em Cuiabá)

E agora vamos à marcha das vadias: Tudo começou quando um policial do Canadá afirmou que o número de estupros diminuiria se as mulheres “deixassem de se vestir como vadias”. Antes de qualquer coisa, vamos esclarecer um ponto: Muitas pessoas defendem e muitos condenam a marcha das vadias.

No entanto, entre os que apóiam o movimento, tem alguns que o fazem por motivos extremamente machistas. Cito os comentários na matéria que o Olhar Conceito fez sobre o assunto (clique AQUI). Em um deles, um leitor afirma que quanto menor a roupa das mulheres, melhor, e que não é por isso que elas devem ser violentadas. Ótimo, até ai tudo bem. Mas ele continua: “Agora, quem não gosta de ver mulher bonita em trajes menores e ou sensuais, só tenho a lamentar o gosto de tais pessoas”.


(Projeto de nu artístico Black Mirror, do fotógrafo cuiabano Rafael Monteiros. As fotos que fazem parte do projeto serão expostas ainda em 2014 no salão de artes do Sesc Arsenal (Crédito: Rafael Monteiro)

Então você apóia a marcha das vadias não por conta da violência contra as mulheres, mas para validar suas opiniões homofóbicas e intensificar seu desejo sexual pelo olhar apenas em “mulheres bonitas”? Qual o seu conceito de beleza? O mesmo que você foi moldado a ter pela indústria da moda? O corpo foi tratado como objeto há muito tempo e continua a ser tratado desta forma agora. Não o consideramos como algo natural, inerente a todo o ser humano, mas como um instrumento sexual extremamente ofensivo a luz do dia.

É por conta disto que acho uma ótima iniciativa a sessão de fotos da Marcha das Vadias 2014 de Cuiabá. Mostra as mulheres como são e despertou nos leitores revolta, apoio (nem sempre pelos melhores motivos) e dúvida. Mas este é o objetivo da arte: trazer questionamento onde só há conceitos pré-estabelecidos e certezas sem bases.


Jeanne, Reclining nude, de Pablo Picasso

E para aqueles que acham que isto “não é arte, é putaria”, ouça o que Pablo Picasso tem a dizer sobre o assunto: “A arte nunca é casta, se deveria mantê-la longe de todos os cândidos ignorantes. Nunca se deveria deixar que gente não preparada se lhe aproximasse. Sim, a arte é perigosa. Se é casta, não é arte”.

O vídeo de Priscila Lopes é arte? Talvez não seja, mas seu corpo é. As fotos da marcha das vadias possuem qualidade inquestionável? Talvez não, mas têm uma mensagem. A nudez só é ofensiva porque nós a consideramos como tal. A partir do momento em que o corpo humano passar a ser tratado como parte da natureza, parte integrante de nós, sem vergonha, queixas ou pensamentos negativos, talvez não tenhamos mais necessidade de marchas das vadias. E talvez quando este dia chegar, Priscila Lopes não correria o risco de ganhar uma dívida e estaria fazendo o que sempre fez, seja lá o que isso for.

*Cecília Neves é escritora, curiosa sobre o sexo, relacionamentos e idiossincrasias humanas. Ela escreve no Olhar Conceito nos finais de semana e quer que você compartilhe experiências pelo e-mail cecilia.neves25@gmail.com. Para acompanhar mais textos de Cecília, curta a página “Era do Consentimento” no facebook clicando aqui.


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