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Algumas questões sobre o ANPP na visão da Defesa Criminal
Autor: Fernando Faria
17 Jan 2025 - 08:00
O acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido na legislação brasileira pela Lei Federal 13.964/2019 (Pacote Anticrime) como um mecanismo de justiça negociada para agilizar a resolução de determinados casos criminais e, assim, reduzir a sobrecarga do Judiciário, nos casos em que o arquivamento não for a medida adequada.
Desde sua implementação, o ANPP tem desempenhado um papel importante na desburocratização do sistema penal, permitindo a resolução de casos de maneira mais célere e com menor custo processual. Esse mecanismo tem se mostrado uma alternativa eficaz para aliviar a sobrecarga do Judiciário e garantir uma resposta penal mais proporcional para delitos de menor gravidade.
Contudo, sua aplicação prática ainda enfrenta desafios importantes, especialmente no que se refere à (1) recusa não motivada ou fundamentada de forma inadequada; (2) à obrigatoriedade de confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal; (3) e à análise do instituto em casos de concurso de crimes, dentre outros.
(1) A recusa imotivada ou baseada em fundamentação inidônea pode justificar a rejeição da denúncia, conforme o art. 395, II e III, do Código de Processo Penal, que exige que a peça acusatória seja devidamente justificada. Nesse contexto, o controle jurisdicional surge como um instrumento essencial para equilibrar o processo penal negocial, assegurando que o Ministério Público exerça sua discricionariedade de forma regrada e fundamentada. Não se trata de obrigar o órgão da acusação oficial a oferecer o ANPP – o que a ordem jurídica não admite –, mas de garantir que sua recusa seja concretamente motivada, dentro dos limites constitucionais.
Conforme advertiu o Ministro Gilmar Mendes, “O processo criminal inviável, na verdade, é um processo pecaminoso no sentido constitucional, porque ele onera, penaliza a parte simplesmente pela propositura” (voto na Pet 3.898, Plenário, j. 27.08.2009). Essa crítica ao abuso do processo penal ressoa com a reflexão de Pimenta Bueno, que já advertia: “(...) não basta um indiciamento qualquer; é preciso que ele seja procedente, pois seria opressivo e violento sujeitar o cidadão ao desar da prevenção, a sofrer em sua liberdade, enfim aos graves incômodos de uma acusação, sem razão muito suficiente para tal sacrifício” (Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: RT, 1959, p. 268).
Aury Lopes Jr. reforça esse entendimento ao ressaltar que “A acusação não pode, diante da inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu” (Direito Processual Penal, 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 234-235).
Nesse mesmo sentido, Gustavo Badaró aponta que “só é cabível a denúncia se, previamente, a proposta de acordo de não persecução penal for rejeitada ou, justificadamente, conclua-se que não era o caso de sua formulação” (Processo Penal. São Paulo: RT, 2022, p. 194). Essa perspectiva reforça que o ANPP não é uma mera faculdade, mas um mecanismo regido pelo princípio do poder-dever, exigindo fundamentação idônea para sua recusa. Assim, a aplicação do ANPP deve estar pautada por critérios objetivos e aderentes às garantias constitucionais, evitando que o processo penal seja usado como instrumento de punição antecipada ou vexação indevida ao investigado.
Decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça têm reforçado esse entendimento, consolidando a ideia de que o Ministério Público deve justificar concretamente o não cabimento do acordo. Como bem apontou o Ministro Rogerio Schietti Cruz no REsp 2.038.947, “a recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Ministério Público em oferecer o acordo deve levar à rejeição da denúncia, por falta de interesse de agir.” Essa posição reforça o papel do Judiciário como guardião dos direitos fundamentais no processo penal negocial.
Além disso, o impacto prático de uma acusação sem fundamento vai muito além do processo em si, gerando graves consequências para o acusado. O ANPP não apenas beneficia o investigado, mas também contribui para a racionalização do sistema penal, permitindo que o Judiciário concentre esforços em casos mais graves e complexos. Dessa forma, promove uma justiça mais eficiente e voltada para a proteção social ampla, ao priorizar a solução rápida e justa de delitos menos relevantes. O ANPP, nesse cenário, assume um papel essencial para mitigar esses prejuízos e evitar que o processo penal seja utilizado de forma desproporcional.
(2) Além da questão da recusa fundamentada, a obrigatoriedade de confissão também apresenta desafios significativos para o pleno exercício da defesa. Embora a confissão tenha sido inicialmente interpretada como um requisito indispensável para o ANPP, essa visão tem sido flexibilizada pela doutrina e pela jurisprudência, reconhecendo que tal exigência viola o direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
A Recomendação Conjunta 02/2023-PGJ/CGMP, da Egrégia Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso, reforça essa posição ao afirmar que a exigência de confissão afronta não apenas o nemo tenetur, mas também a presunção de inocência.
Essa interpretação evita constrangimentos indevidos ao investigado e garante que outros elementos probatórios possam justificar a oferta do acordo. A exigência de confissão incondicional também contraria normas internacionais de direitos humanos, como o Pacto de San José da Costa Rica, que garante a qualquer pessoa o direito de não se autoincriminar. Essa proteção reforça que o investigado não pode ser compelido a admitir sua culpa como condição para acessar um benefício legal.
A confissão, quando exigida de forma incondicional, representa um risco prático significativo: pode constranger o investigado a admitir fatos que ele nega ou sobre os quais ainda pairam dúvidas razoáveis. Esse cenário é especialmente crítico em casos onde há dúvidas sobre a autoria ou a materialidade do delito, pois a confissão passa a ser utilizada como substituto indevido da investigação probatória.
Nesse sentido, o advogado desempenha um papel fundamental ao questionar a imposição de confissão como condição absoluta, propondo alternativas que respeitem os direitos fundamentais do investigado e garantam a proporcionalidade do acordo.
(3) A aplicação do ANPP em casos de concurso de crimes é outro aspecto que demanda atenção. É imprescindível rejeitar a analogia in malam partem, como a soma de penas mínimas para inviabilizar o acordo. A correta interpretação do art. 119 do Código Penal, que prevê a análise isolada das penas para fins de extinção da punibilidade pela prescrição, oferece uma abordagem mais adequada e proporcional.
Essa posição conta com o beneplácito de autorizada doutrina, como Leonardo Schmitt de Bem. Nesse sentido, o autor destaca: “Como já ocorre para fins de prescrição, cuja consequência também é a extinção de punibilidade, a oferta do acordo não poderia operar isoladamente? A princípio, não há óbice para tanto, devendo-se aplicar por analogia o art. 119 do Código Penal” (Os Requisitos do Acordo de Não Persecução Penal. In: Acordo de Não Persecução Penal, Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli (org.), 3ª ed., Belo Horizonte, São Paulo, D’Plácido, 2022, p. 276).
Por exemplo, em um caso de estelionato e falsidade ideológica, ambos com penas mínimas inferiores a quatro anos, cada delito deve ser avaliado individualmente para verificar o cabimento do ANPP. Essa análise isolada não é apenas uma recomendação doutrinária, mas um reflexo direto do princípio constitucional da individualização da pena, consagrado no art. 5º, XLVI, da Constituição da República. Esse princípio assegura que cada conduta seja examinada em suas peculiaridades, evitando punições desproporcionais e garantindo que o ANPP seja aplicado de maneira justa e proporcional.
Além disso, decisões recentes reforçam que é indevida a negativa do ANPP com base na natureza abstrata do delito, salvo previsão legal específica. O Superior Tribunal de Justiça, em precedentes como o REsp 2.038.947, apontou que “não cabe ao Ministério Público nem ao Judiciário criar, em prejuízo do investigado, novas vedações não previstas pelo legislador.” Essa visão preserva a integridade do ANPP como um mecanismo de consenso dentro dos limites definidos pelo ordenamento jurídico.
Reitera-se: o advogado criminal tem um papel estratégico no processo negocial, sendo responsável por avaliar as condições do acordo, contestar eventuais recusas inadequadas e propor alternativas proporcionais às circunstâncias do caso concreto. Cabe ao defensor assegurar que o ANPP não se torne mais gravoso do que o próprio processo penal e que as cláusulas do acordo sejam adequadas à realidade do investigado, respeitando os princípios constitucionais e legais.
Para que o ANPP seja efetivamente um avanço no sistema de justiça, suas exigências devem respeitar os direitos fundamentais. Não é um privilégio, mas uma ferramenta indispensável para racionalizar o sistema penal e garantir a justiça material.
Dessa forma, a eventual recusa na proposta de ANPP deve estar aparelhada de fundamentação idônea, com fiel aderência fática, sob pena de rejeição da denúncia. A confissão não deve ser um obstáculo intransponível. Da mesma forma, a análise do cabimento em casos de concurso de crimes deve respeitar o art. 119 do Código Penal, protegendo o investigado contra interpretações que somam penas indevidamente.
Ao analisar cada caso de forma individualizada, o advogado criminal cumpre sua missão de zelar pelo equilíbrio entre justiça e direitos fundamentais. Somente assim será possível consolidar o ANPP como uma ferramenta indispensável para uma justiça penal mais eficiente, humana e proporcional no Brasil.
O ANPP não é apenas um instrumento jurídico, mas um avanço civilizatório que reafirma o compromisso do sistema de justiça com a eficiência e os direitos fundamentais, garantindo que a aplicação do direito penal seja pautada pelo equilíbrio entre celeridade e respeito à dignidade da pessoa humana.
Fernando Faria é advogado com atuação em todo território nacional, notadamente em Mato Grosso, São Paulo e Brasília. Sua trajetória profissional inclui a condução de casos de alta complexidade e repercussão nacional.