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Terça-feira, 16 de abril de 2024

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O pacote anticorrupção e a ilegalidade na tipificação do enriquecimento

Em tempos de atenção redobrada aos anseios da população, os Poderes se unem para atender aos gritos de justiça e punição aos que julgam ser culpados. Nesse caminho, literalmente “metem os pés pelas mãos” e atropelam os mais básicos e fundamentais direitos individuais que qualquer estudante primeiro-anista da faculdade de Direito já conhece.

É aí que quem deveria ser fiscal da lei defende o uso de provas ilícitas no processo, juízes federais defendem a prisão sem o trânsito em julgado da sentença condenatória e o Poder Executivo, acuado por uma população que
saiu um dia do ano às ruas para protestar sua insatisfação, lança o chamado
pacote anticorrupção.

Ouvir a Presidente da República em rede nacional divulgando o pacote anticorrupção soa satisfatório a essa população que protesta bravamente nas ruas. De fato seria, se tais medidas já não fossem antigas conhecidas dos Poderes e divulgadas massivamente como um pacote apenas para “inglês ver”. Dentre as medidas previstas – várias delas evidentemente inconstitucionais – uma delas que me chamou a atenção e poucas manifestações vi a respeito é sobre a tipificação do enriquecimento ilícito que passo a analisar detalhadamente.

Conforme previsto pelo pacote anticorrupção, a medida de tipificação do enriquecimento ilícito advém do Projeto de Lei nº. 5.586/2005 que altera o Código Penal e acrescenta o artigo 317-A que criminaliza e impõe pena de reclusão de 03 a 08 anos e multa ao funcionário público que possui, mantém ou adquire para si ou para outrem, de forma injustificada, bens ou valores de qualquer natureza incompatível com sua renda ou a evolução do seu patrimônio bem como faça uso de tais bens de forma que permita atribuir-lhe sua efetiva posse ou propriedade.

A mesma figura típica foi prevista pelo tão criticado anteprojeto do novo Código Penal Brasileiro que previu em seu artigo 277 a criminalização e a imposição de pena de reclusão de 01 a 05 anos e perda de bens ao funcionário público que adquire, vende, empresta, aluga, recebe, cede, utiliza ou usufrui de bens ou valores móveis ou imóveis que contenham valor incompatível com seus rendimentos auferidos em razão do cargo ou outro meio lícito.

Percebe-se que ambas as figuras típicas se preocuparam em prever que a evolução patrimonial não necessariamente se dá através das rendas auferidas pelo cargo do servidor público, mas podem ocorrer de forma diversa e para não caracterização do ilícito em comento deve ser devidamente justificada. Por óbvio, imaginemos que Tício, funcionário público, usa aos finais de semana o veículo importado de seu pai, empresário bem sucedido; ou, Mévio, juiz de direito, acerta na mega sena e de um dia para o outro aumenta vultuosamente seu patrimônio – ambos estariam incorrendo no crime de enriquecimento ilícito se não pudessem justificar o uso do veículo ou o vultuoso aumento patrimonial auferido de forma lícita, respectivamente.

Não obstante, a normativa penal se olvidou que essa justificativa é feita por todo cidadão ano após ano mediante sua declaração de imposto de renda. Ou seja, ao impor ao servidor público que justifique qualquer renda ou patrimônio incompatível com suas condições econômicas o Poder Estatal terceirizou ao particular sua obrigação de fiscalizar e investigar eventuais práticas delituosas.

Tal medida tem se tornado rotina na técnica legislativa, vide a terceirização de responsabilidade que traz a Lei 12.683/12 que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e elenca as pessoas sujeitas ao mecanismo de controle e o instituto da colaboração premiada previstos em leis esparsas e, mais recentemente, na Lei 12.850/2013 que dispõe sobre a organização criminosa.

O fato é que não se poder negar que tal medida corresponde a uma evidente inversão do ônus da prova em que a acusação não precisa mais provar a ilicitude da evolução patrimonial mas apenas indicar essa evolução e  delegar ao acusado que comprove a licitude de seus proveitos e patrimônio.

Corresponde também a flagrante violação ao direito do acusado de não contrair provas contra si mesmo, uma vez que é dever da acusação que comprove suas alegações e não force o acusado a assumir seu papel.

Ainda, de se espantar que o próprio Projeto de Lei 5.586/2005 previu em sua justificativa que tal conduta de enriquecimento ilícito já é tipificada na Lei de Improbidade Administrativa em seu artigo 9º, inciso VII. Ora, o Direito Penal possui caráter fragmentário/subsidiário, ou seja, só criminaliza aquelas condutas ainda não previstas em nenhuma outra norma de caráter não penal.

O Estado apenas recorre a reprimenda corporal – e as mazelas inerentes ao cárcere - quando não houverem outros meios – que não o Penal – que reaja a violação do bem jurídico.

Destarte, a medida prevista no pacote anticorrupção não só é inconstitucional, por flagrante violação a presunção de inocência, como açodada, fruto do desespero dos Poderes que há tantos anos assistem inertes uma população que sofre dia após dia com uma corrupção intrínseca as próprias atividades dos membros desses Poderes.


Artur Barros Freitas Osti, é advogado, formado pela Pontifícia
Universidade Católica do Estado do Paraná, Pós-graduando em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM em parceria com a Universidade de Coimbra.
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