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Prerrogativa de foro também é aplicável em ações de improbidade

Autor: Valber Melo e Filipe Maia Broeto Nunes

21 Mar 2017 - 15:07

O foro por prerrogativa funcional, como instituto complexo e polêmico que é, sempre atraiu para si a atenção dos estudiosos no âmbito jurídico. Se, de um lado, há quem o defenda, de outro, há aqueles que são contrários à sua existência. Não obstante, porém, os pensamentos prós ou contra o instituto — que tem assento constitucional, destaque-se —, far-se-á, na presente oportunidade, uma análise da possibilidade de sua “extensão” às ações de improbidade administrativa.

Impõe-se consignar que, para o desenvolvimento válido e coerente da presente temática, levar-se-á em conta o fato de que instituto existe e, por ter guarida constitucional, pelo menos enquanto assim o for, deve(rá) ser observado pela atividade sancionatória estatal.

A dar início efetivamente ao enfrentamento do tema proposto, mister especificar o que, de fato, vem a ser o foro funcional e para qual finalidade foi criado pelo Constituinte. Aclarando o tema, ao dissertar sobre as prerrogativas (dentre elas, o foro funcional) de certas autoridades públicas, José Afonso da Silva preleciona que essas “São estabelecidas menos em favor do congressista que da instituição parlamentar, como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais”.[1]

É de se ver, portanto, que não se trata de privilégio — que tem conotação pessoal e, por isso, seria de todo inconstitucional, por afronta ao postulado da isonomia material —, mas, sim, de verdadeira garantia, constitucionalmente assegurada a certas funções, essencial ao pleno desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.

A razão de ser da garantia ora em estudo, segundo escólio do ministro Victor Nunes Leal, se traduziria na presunção de que “os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influencias que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado”.[2]

Nesse contexto, nota-se claramente que nada há de inconstitucional ou, mesmo, imoral na existência e utilização da garantia do foro por prerrogativa funcional no âmbito do processo penal. E mais, defende-se, aqui, que o foro deve estender-se não somente aos processos criminais, mas, também, às ações de improbidade administrativa.

Para fundamentar tal entendimento, desenvolver-se-ão, ainda que perfunctoriamente, argumentos calcados em três premissas essenciais, a saber: (i) a inegável similitude ontológica das sanções cominadas nas ações de improbidade administrativa com as do processo penal; (ii) a máxima do “a maiore ad minus”; e (iii) o potencial comprometimento do adequado julgamento de uma autoridade pública de relevância nacional por uma instância singela.

Tal tese afigura-se sustentável, num primeiro momento, haja vista a induvidosa aproximação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. Bem por isso, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm afirmado que as sanções aplicadas na ação dita de “natureza civil”, por se aproximarem sobremaneira às punições penais, merecem tratamento processual semelhante.

Note-se que esse entendimento tem preponderado nos tribunais superiores[3], porquanto a ação de improbidade administrativa, regulada pela Lei 8.429/92, possui um caráter “quase-penal”[4], devendo observar, assim, as normas de Direito Processual Penal, sobretudo em matéria de direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição.

Isso ocorre, porquanto a Lei 8.429/92, ao delinear, em seu artigo 12, um rol de sanções materialmente administrativas, aplicáveis ao agente ímprobo, optou por identificá-las em alto grau com aquelas penalidades de natureza eminentemente criminal que a Constituição Federal de 88 elencou em seu artigo 5º, inciso XLVI, à exceção da pena privativa de liberdade.

Tanto isso é verdade que o saudoso ministro Teori Albino Zavascki, do STF, em voto proferido no bojo do Ag.Reg. na Petição 3.240/DF, asseverou que, “embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natureza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, [...] Com efeito, não há qualquer diferença entre a perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos ou a imposição de multa pecuniária, quando decorrente de ilícito penal e de ilícito administrativo.”

Forçoso admitir-se, desse modo, que, malgrado sua natureza civil, a ação de improbidade administrativa comporta uma série de sanções próximas da seara penal, razão pela qual a ela se designa um caráter sui generis, próprio do Direito Administrativo Sancionador, entendendo-se que, conquanto formalmente cível, sua essência é reflexo imediato e inarredável do regramento punitivo dado no âmbito do Direito Penal brasileiro [5].

Com efeito, resta patente que a presente tese não se trata de um sofisma ou mera fraude hermenêutica. Em verdade, através da comparação ontológica das punições previstas na LIA, chega-se inexoravelmente à conclusão de que é, sim, aplicável a garantia da prerrogativa de foro também às ações de improbidade administriva.

Impõe-se salientar, ademais, que tal linha intelectiva encontra guarida na chamada Teoria das Competências Complementares Implícitas, estudada no Direito Comparado, mas já adotada em tribunais brasileiros, mormente pelo Supremo Tribunal Federal [6]. A aprofundar a abordagem do tema da Teoria Das Competências Complementares Implícitas, vejam-se as lições de J.J. Gomes Canotilho:

[...] A força normativa da Constituição é incompatível com a existência de competências não escritas, salvo nos casos de a própria Constituição autorizar o legislador a alargar o leque de competências normativo-constitucionalmente especificado. No plano metódico, deve também afastar-se de ‘poderes implícitos’, de ‘poderes resultantes’ ou de ‘poderes inerentes’ como formas autônomas de competência. É admissível, porém, uma complementação de competências constitucionais por meio do manejo de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo a interpretação sistemática ou teleológica). Por essa via, chegar-se-á a duas hipóteses de competência complementares implícitas: (1) competências implícitas complementares, enquadráveis no programa normativo-constitucional de uma competência explícita e justiçáveis, porque não se trata tanto de alargar competências, mas de aprofundar competências (ex.: quem tem competência para tomar uma decisão deve, em princípio, ter competência para a preparação e a formação da decisão); (2) competências implícitas complementares, necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes por meio da leitura sistemática e analógica de preceitos constitucionais.[7]

Observe-se que a referida teoria encontra-se consolidada no STF na hipótese de existência de lacunas constitucionais, quando a lógica permitir indicar a competência do respectivo tribunal ou quando a própria Constituição o estabelecer.

Por assim ser, partindo-se das balizas até aqui estabelecidas, há que se questionar se a “ampliação” ou “extensão” do foro por prerrogativa de função às ações de improbidade administrativa configura hipótese de aumento competências ou, ao revés, mostra-se como um necessário aprofundamento competências.

No caso em estudo, ao que parece, em sendo estendida a garantia do foro funcional às ações de improbidade administrativa, não haveria qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, porquanto tal interpretação decorre da própria finalidade do instituto do foro por prerrogativa de função, que é proporcionar um julgamento com mais isenção, de acordo com o escopo teleológico da Constituição de 88.

Nesse viés, em total afinação ao quanto exposto, vale destacar que o STF, dando guarida à tese aqui defendida, já entendeu pela “extensão” do foro por prerrogativa funcional também às ações de improbidade administrativa.

Veja-se, nesse sentido, que a Suprema Corte, na Pet 3.211-0 QO/D, agasalhando a presente tese, decidiu que um agente com prerrogativa de foro — no caso Ministro do STF —, não poderia se submeter à jurisdição de um juiz de 1º grau em uma ação de improbidade administrativa, sob pena de se inverter, vertiginosamente, a ordem constitucional estabelecida nas prerrogativas, como, por exemplo, na hipótese de um magistrado de grau inferior decretar a perda do cargo de um juiz de grau superior.

Note-se que esse julgado reconheceu (e reiterou) a tese da existência, na Constituição Federal de 88, de competências implícitas complementares, deixando claro que, não obstante a declaração de inconstitucionalidade do preceito normativo infraconstitucional (Lei 10.628, de 2002 — artigo 84, §1º e §2º CPP), a Prerrogativa de Foro, em ação de improbidade administrativa, tem base para ser sustentada —– ainda que implicitamente — na própria Carta Constitucional.

Não fosse o bastante, vale ressaltar, ainda, que o ministro Luiz Fux, do STF, no bojo no MS 31.234 MC, de sua relatoria — no qual se questionava a competência em ação de improbidade contra o ministro de Estado da Fazenda — deferiu medida liminar argumentado, parta tanto, que, “a despeito da nítida oscilação jurisprudencial pretérita sobre o tema, o entendimento de que agentes políticos podem responder como réus em ação de improbidade, mas com observância da prerrogativa de foro, tem se consolidado mais recentemente na jurisprudência pátria, e em particular, no âmbito desta Suprema Corte (…)”.

Não se desconhece, é verdade, que a matéria ainda carece de sedimentação jurisprudencial, o que, todavia, sem dúvida alguma, já vem sendo feito pelos tribunais pátrios, mormente no âmbito da Suprema Corte.

Nessa toada, impõe-se consignar que, mais recentemente, o saudoso ministro Teori Albino Zavascki, no bojo do agravo regimental na petição 3.240/DF, interpretando os precedentes fixados no MS 31.234/MC, bem como na Pet 3.211-0 QO/DF, com a maestria que sempre lhe foi peculiar, consignou lições irretocáveis sobre o tema, in verbis:

Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos.

[...]

Se há, por vontade expressa do Constituinte, prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam simples pena de multa pecuniária, não teria sentido negar tal garantia em relação às ações de improbidade, que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos políticos.

A toda evidência, os precedentes supracolacionados tão somente corroboram que o tema já não se mostra mais controverso como outrora. Ao revés, o que se pode perceber é a sedimentação da tese de que deve, sim, prevalecer o foro por prerrogativa de função, mesmo nas ações que versem sobre improbidade administrativa, tendo em mira a inequívoca similitude ontológica do Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal e Processual Penal.

De outro prisma, não fosse suficiente o fundamento de que a semelhança ontológica entre as punições do direito penal e direito administrativo sancionador admite a extensão do foro por prerrogativa funcional aos agentes públicos réus em ação de improbidade administrativa, bastaria trazer à baila, “contrario sensu”, o princípio do “a maiore ad minus”, pelo qual o “que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos, ou "quem pode o mais, pode o menos”. [8]

Nesse viés, argumenta-se que, se o Constituinte Originário previu a prerrogativa de foro para agentes públicos que praticam crimes, que possuem a possibilidade de pena privativa de liberdade e, por isso, são em certa medida mais graves que atos de improbidade, não há justificativa (plausível) para que o mesmo não ocorra com as ações de improbidade administrativa. É dizer, se para o crime há o foro por prerrogativa de função, o mesmo deve ocorrer com as ações de improbidade administrativa, que são, em certa medida, menos graves que os delitos propriamente ditos.

A propósito, adotando esse entendimento, o então ministro Cezar Peluso, na QO da Pet. 3.211, pontuou que, “se, pela Constituição, Ministro do Supremo Tribunal Federal só pode ser processado, nas infrações penais comuns, por esta corte e, nos crimes de responsabilidade, pelo Senado Federal, não é concebível que ação por ilícito de menor gravidade, entre cujas sanções está a perda do cargo, possa ser atribuída à competência de outros órgãos".

Com efeito, ou se entende que as sanções aplicáveis nos âmbitos do Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal são de tal modo semelhantes a ponto de permitir o tratamento análogo no que tange ao foro por prerrogativa de função, ou se admita (por coerência) que, se a prerrogativa funcional vale para o direito criminal — que pode, em tese, ser mais grave —, deve, por óbvio, ser aplicada também às ações de improbidade administrativa. Isso porque, a maiore ad minus!

Por derradeiro, mas não menos importante, há que se alertar que a competência de instância singela para julgamento de autoridades máximas, de relevância nacional, tão somente fragiliza o Estado Democrático de Direito, na medida em que contrariam a finalidade da proteção outorgada, pela própria Constituição Federal, às autoridades detentoras de foro funcional, que, pela relevância da função que desempenham, não podem ficar à mercê de toda e qualquer sorte.

Nesse contexto, portanto, não pairam dúvidas de que a prerrogativa de foro tem como fundamento precípuo o princípio da isonomia e o princípio hierárquico, buscando, ao invés de privilegiar pessoas, preservar a independência funcional dos agentes detentores de prerrogativas constitucionais e institucionais.

Noutras palavras, o instituto em análise tem por finalidade a proteção das funções desempenhas por determinados agentes, e não a proteção destes, enquanto pessoas. É até mesmo por isso que não se afigura correto falar em foro privilegiado (porquanto privilégios são pessoais), mas, sim, em foro por prerrogativa de função (caráter de impessoalidade).

É justamente pela relevância dessas funções que não se admite (ou não se deveria admitir) que autoridades nacionais, tais como ministros do STF, senadores, deputados federais, ministros de Estado, etc., sejam julgadas por instância de primeiro grau, seja em sede de crimes comuns e de responsabilidade (competência constitucional explícita), seja, ainda, no âmbito das ações de improbidade administrativa (conclusão que se chega através de uma interpretação da teoria das competências complementares implícitas).

Destarte, com supedâneo nos argumentos até aqui expendidos, consigna-se que a extensão do foro por prerrogativa de função às ações de improbidade administrativa é tão somente consectário lógico do próprio sistema de competências constitucionais, não sendo, nem em hipótese, espécie de privilégio, porquanto traduz-se em corolário da teoria das competências complementares implícitas.

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ed. Malheiros: São Paulo/SP. p. 532.

 [2] STF, Rcl. 473, Rel. Min. Victor Nunes Leal. Aud. DJe publicacao de 06/06/62.

[3] STF, AC 2032 QO, Rel.  Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 15/05/2008, DJe-053 DIVULG 19-03-2009 PUBLIC 20-03-2009 EMENT VOL-02353-01 PP-00090 RTJ VOL-00209-02 PP-00539; STJ, REsp 895.530/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 18/11/2008, DJe 04/02/2009.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, abr./jun. 1998, p. 215.

[5] MEDINA OSÓRIO, Fábio. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública - corrupção - ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 234.

[6] [...] resta consolidada no Supremo Tribunal a aplicação da tese das competências complementares implícitas no caso da existência de lacunas constitucionais e a lógica permitirem indicar a competência do respectivo tribunal ou quando a própria Constituição Estadual o estabelecer. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Fabio_Osorio.html.

[7] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 543.

[8] CASTRO, Aldemário Araújo, O documento eletrônico e a assinatura digital in Revista Jus Vigilantibus - acesso a 11 de março de 2009.

Valber Melo é advogado, especialista Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Direito Público, Pós-graduado em Ciências Criminais. Professor licenciado de Direito Processual Penal e Direito Penal da Universidade de Cuiabá. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-MT.

Filipe Maia Broeto Nunes é estagiário no escritório Valber Melo Advogados Associados.
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