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O acordo de Não Persecução Penal e o concurso de crimes

Ulisses Rabaneda dos Santos e Renan F. Serra Rocha Santos

Através da Lei n.º 13.964/2019, foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro o instituto do acordo de não persecução penal.

O Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);          (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou       (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Em rápidas palavras e da análise da alteração legislativa, conclui-se que é cabível o acordo de não persecução penal nas seguintes hipóteses: 1. Não ser caso de arquivamento da investigação; 2. O investigado ter confessado formal e circunstancialmente a infração penal; 3. A infração não ter sido cometida com violência ou grave ameaça; 4. A pena mínima ser inferior a 4 anos; 5. O acordo ser necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime; 6. Não ser cabível a transação penal, que é mais benéfica; 7. Não ser o investigado reincidente, criminoso habitual, reiterado ou profissional, salvo se insignificantes as infrações; 8. Não ter o investigado sido beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro acordo de não persecução penal, suspensão condicional do processo ou transação penal; 9. Não se tratar de violência doméstica, familiar ou contra a mulher em razão do gênero.

Quanto a aplicação imediata da norma aos casos em andamento, uma pequena reflexão. Primeiro, verifica-se caráter processual na alteração legislativa, pois impede a persecução penal. Segundo, também denota-se o caráter material da norma, pois cria mais uma causa de extinção de punibilidade. Assim, resta evidente a característica hibrida [penal e processual] da alteração legislativa.

Fixadas estas premissas, bem ainda com a constatação de que o oferecimento do acordo de não persecução e sua sujeição à aceitação ou não é benéfica ao investigado/réu, conclui-se, com base nos Arts. 2o do Código de Processo Penal e 2o, parágrafo único, do Código Penal, que é possível sua aplicação imediata aos inquéritos, TCO’s, PIC’s ou ações penais já em curso, enquanto não encerrada a “persecução penal” em sua integralidade com o trânsito em julgado.

Ponto que merece atenção é a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal no caso de concurso de crimes.

Quanto ao concurso material de infrações penais, surge a seguinte indagação: Para aferição do requisito objetivo será analisado cada crime isoladamente ou promover-se-á a soma das penas mínimas, para se verificar se o resultado é inferior a 4 anos?

Submetida a questão a um olhar desatento, a resposta seria pela necessidade de soma das penas para análise do preenchimento do requisito objetivo, como ocorre com a suspensão condicional do processo, nos termos da súmula 243 do STJ, para quem "o benefício da suspensão condicional do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja no somatório, seja pela incidência da majorante ultrapassar o limite de 1 (um) ano".

Contudo, esta conclusão é equivocada!

Para a análise do requisito objetivo [pena mínima inferior a 4 anos] no acordo de não persecução penal, deve ser levado em conta cada crime isoladamente, com suas causas de aumento e/ou diminuição, não somando as penas pelo concurso material.

Isto porque o acordo de não persecução penal, apesar de guardar algumas semelhanças com os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, no sentido de prever uma Justiça penal negocial, diferencia-se deles por possuir aplicação significativamente mais abrangente e peculiar.

Diverso do que ocorre com os institutos previstos na lei n.º 9.099/95, nos quais a aplicabilidade da benesse está limitada aos delitos de menor potencial ofensivo [transação penal] e àqueles com pena mínima igual ou inferior a 1 ano [suspensão condicional do processo], o acordo de não persecução penal, como visto, pode ser aplicado aos crimes com pena mínima inferior a 04 anos, observados os demais requisitos e cláusulas.

Quanto a este instituto o legislador optou por não impedir, de plano, sua utilização aos que respondam a mais de um processo criminal, como ocorre no sursis processual [Art. 89 da lei 9.099/95]. Conforme se extrai do texto legal [art. 28-A, § 2º, II do CPP], a não aplicabilidade em função de tal aspecto [pluralidade de processos] se reserva aos casos nos quais se verifique a presença de elementos que indiquem que o investigado/réu é criminoso habitual, reiterado, profissional ou que o acordo não seja suficiente para a repressão e prevenção delitiva, requisitos de ordem subjetiva.

Em outras palavras, o acordo de não persecução penal pode ser firmado mesmo por aqueles que respondam mais de um processo criminal ou sejam alvo em mais de um procedimento investigatório.

Veja que em relação a transação penal, a lei fixou que o agente só pode lançar mão de tal instituto uma vez a cada 05 [cinco] anos. Já no âmbito do acordo de não persecução penal, a hipótese de inaplicabilidade é menos restritiva, atingindo tão somente o agente que houver sido “beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo”, consoante dispõe o inciso III do § 2º do art. 28-A do Código de Processo Penal.

Para facilitar a compreensão, veja duas situações hipotéticas:

CASO HIPOTÉTICO 1: João é alvo de dois termos circunstanciados de ocorrência, pela prática em tese de dois crimes de ameaça, fatos ocorridos em contextos distintos. A primeira infração penal teria sido cometida em 01.01.2019 [infração A], e a segunda em 01.01.2020 [infração B]. João acata proposta de transação penal referente a “infração A”, em audiência realizada no dia 02.02.2020. Ao assim proceder, João fica impossibilitado de nova transação penal na audiência de referente a “infração B”, posto que impedido de fazer jus ao benefício pelo prazo de 05 anos.

CASO HIPOTÉTICO B: Moises, por sua vez, está sendo investigado em dois inquéritos diferentes pela prática de dois crimes de lavagem de dinheiro [pena: 3 a 10 anos], ocorridos em contextos fáticos distintos. O primeiro crime teria sido cometido em 01.01.2019 [crime A], e o segundo em 01.01.2020 [crime B]. Moisés firma acordo de não persecução penal com o MP em 02.02.2020, referente ao “crime A”. Ao assim proceder, fica Moisés automaticamente impossibilitado de realizar novo acordo de não persecução referente ao “crime B”, tão somente pelo aspecto temporal? A resposta é não! Isto porque Moisés não firmou idêntico ajuste nos 05 [cinco] anos anteriores ao cometimento da segunda infração [crime B].

Conclui-se, pois, que a cláusula temporal de não aplicabilidade prevista no inciso III do §2º do art. 28-A do CPP, não impede, por si só, que o mesmo agente firme mais de um acordo de não persecução penal dentro do interregno de 5 anos.

Fosse outra a intenção do legislador, bastaria ter repetido, ipsis litteris, a redação do §2º, inciso II, do art.76 da Lei 9.099/95, o que de fato não ocorreu.

Sendo assim, se o agente pode EM TESE ser beneficiado simultaneamente com mais de um acordo de não persecução em processos ou investigações distintas, desde que os delitos ali apurados isoladamente permitam, poderá sê-lo quando um único procedimento apure vários crimes, desde que cada um autorize a aplicação do instituto, bem como estejam presentes os outros requisitos, inclusive de ordem subjetiva.

O fato de dois ou mais crimes terem sido investigados por meio de um único inquérito policial, não retira automaticamente o direito ao acordo, ainda que a soma das penas mínimas alcance ou ultrapasse 4 anos, devendo, nesta hipótese, ser aferido o requisito subjetivo para se concluir pela possibilidade ou não de oferecimento do ajuste.

Não parece razoável impedir o acordo a alguém que esteja sendo investigado por dois crimes de corrupção ativa [pena: 2 a 12 anos], por exemplo, no contexto de ter oferecido R$ 50,00 a dois agentes de trânsito, em dias distintos, caracterizando concurso material, cujos fatos se comprovaram isolados em sua vida, enquanto seria admissível em hipóteses mais graves como nos delitos de peculato, corrupção de menores, tráfico privilegiado, se praticados em uma única oportunidade.

Importa dizer que esta conclusão não levará a injustiças penais, com o oferecimento de acordos de não persecução a investigados ou acusados que tenham praticado uma miríade de crimes que isoladamente o admitem. Nestas hipóteses, o requisito subjetivo será avaliado, podendo o benefício ser negado.

Em verdade, esta compreensão vem em favor dos princípios Constitucionais da razoabilidade, proporcionalidade, eficiência e razoável duração do processo, na medida em que casos penais menos graves, ainda que plurais, possam ser objeto de uma Justiça penal negocial, proporcionando resposta estatal mais ágil à sociedade, “desafogando” o judiciário e reduzindo a sensação de impunidade.

Em relação ao concurso formal próprio e a continuidade delitiva, a compreensão é a mesma. Estes institutos fazem com que dois ou mais crimes, preenchidos os requisitos previstos nos Arts. 70 e 71 do Código Penal, tenham aplicação de pena diferente da regra do concurso material, ou seja, utilizam-se da pena do delito mais grave, aumentando-se de 1/6 até 1/2 no concurso formal, e de 1/6 a 2/3 no crime continuado.

Nestes casos [concurso formal e crime continuado], surge a indagação: As causas de aumento do Art. 70 e 71 do Código Penal deverão ser utilizadas para aferição do requisito objetivo [pena mínima inferior a 4 anos] no acordo de não persecução?

Mais uma vez a um olhar distraído a resposta poderia ser sim, em razão do disposto no Art. 28-A, parágrafo 1o, do Código de Processo Penal, que dispõe que “para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto”.

Ocorre que, tanto o concurso formal próprio, quanto o crime continuado, são institutos criados em favor do réu, não podendo, por isso mesmo, serem utilizados em seu prejuízo. Em outras palavras, se não pode haver a soma das penas pelo concurso material para a análise do requisito objetivo, as causas de aumento destes dois institutos igualmente não podem ser levadas em consideração na hipótese.

Algo diferente disso levaria a um curioso paradoxo.

A propósito, invoca-se o caso da prescrição penal para fundamentar.

Sabe-se que esta causa de extinção da punibilidade deve ser analisada, no caso de concurso de crimes, com base em cada um, isoladamente [Art. 119 do CP].

Havendo causa de aumento ou diminuição, elas também devem ser consideradas para o cálculo da prescrição, assim como ocorre com o acordo de não persecução penal. Contudo, tratando-se de continuidade delitiva ou concurso formal próprio, as causas de aumento previstas nos Arts. 70 e 71 do Código Penal não são consideradas para a análise da prescrição, uma exceção à regra geral, exatamente em razão de que estes institutos não podem ser usados em prejuízo do acusado.

Este entendimento restou pacificado na súmula n. 497 do Supremo Tribunal Federal, que assenta: “quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação”.

É o mesmo raciocínio para o acordo de não persecução penal!

As causas de aumento de pena em razão da aplicação do concurso formal e do crime continuado não devem ser levadas em consideração para aferição do requisito objetivo, em uma clara exceção à regra geral do Art. 28-A, parágrafo 1o, do CPP.

Portanto, conclusão mais acertada a que se chega quanto a alteração legislativa é que, no concurso material de crimes, para aferição do requisito objetivo de cabimento do acordo de não persecução penal [pena mínima inferior a 4 anos], deve-se considerar cada infração penal isoladamente, vedada a soma das penas. De igual modo, no concurso formal e no crime continuado, as causas de aumento dos Arts. 70 e 71 do Código Penal não devem ser levadas em consideração para a mesma finalidade.

O não oferecimento do acordo, nestas hipóteses, será possível desde que os requisitos subjetivos não o recomendem, tais como a insuficiência para repressão e prevenção delitiva, bem como nos casos de criminalidade habitual, reiterada ou profissional.

Por fim, outras questões também merecem maiores digressões em relação ao acordo de não persecução penal, tais como a possibilidade de haver controle jurisdicional da recusa do Ministério Público ao seu oferecimento, seu cabimento [ou não!] aos crimes culposos cuja pena mínima ultrapasse o limite legal, se a violência dos crimes que a impede é apenas contra a pessoa ou contra pessoas e coisas, entre outras, que serão objeto de reflexão em nova e futura abordagem.




Advogado; Conselheiro Federal da OAB; Representante Institucional da OAB no Conselho Nacional do Ministério Público; Membro da Comissão Especial de Garantia do Direito de Defesa do CFOAB; Especialista em Ciências Criminais e Criminologia pela UNAMA; Pós-Graduado em Processo Penal pela Universidade de Coimbra/Portugal-IBCCRIM; e-mail: ulisses@rabanedaadvogados.com.br.

Advogado; integrante da banca Rabaneda Advogados Associados; email: advrenanserra@gmail.com.
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