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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

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Gilson Dipp: há muito que fazer para o aperfeiçoamento do Judiciário

Ele se diz um coadjuvante do futuro presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas não é difícil perceber que Gilson Dipp vem percorrendo, nos últimos anos, uma trajetória de destaque. Coordenador da Comissão da Verdade, ex-corregedor nacional de Justiça, presidente da comissão de juristas que elaborou a proposta de reforma do Código Penal... Virando mais uma página da vida que ele garante não planejar, Dipp assume nesta sexta-feira (31) a vice-presidência do STJ.

“Tudo o que aconteceu comigo não foi programado, inclusive ingressar na magistratura”, revela o ministro, aos 67 anos. Natural de Passo Fundo (RS), graduou-se na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi advogado durante 20 anos em Porto Alegre, até que o conterrâneo Ari Pargendler, já no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o convenceu a concorrer a uma vaga destinada ao quinto constitucional e a vestir a camisa da magistratura. No TRF4 permaneceu por dez anos, ocupando inclusive a presidência, para então chegar ao STJ por indicação de Fernando Henrique Cardoso.

Dipp admite que gosta do que faz, mas diz que o mais importante é sentir-se útil. É o que o impulsiona em todas as atividades: “Há muito que fazer para o aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro, mas não tenho a pretensão de ser uma figura essencial.”

Leitor voraz de jornais (pelo menos cinco por dia), Dipp diz que o trabalho nunca foi um fardo, mas confessa que o atormenta a ideia de não concretizar soluções. Para o lazer, sempre sobrou algum tempo: assistir aos jogos do Internacional, apreciar a boa mesa e ficar com a família.

Há 14 anos ministro do STJ, ele sempre atuou na Seção de direito penal. Neste período, julgou quase 70 mil processos. Com a assunção à vice-presidência, o ministro deixa a Quinta Turma e a Terceira Seção e passa a atuar no exame da admissibilidade de recursos extraordinários ao Supremo Tribunal Federal (STF), além de permanecer na composição da Corte Especial.

Segurança jurídica

A caneta pesada nas decisões deu-lhe fama de durão, o que nunca o privou de cortesia no atendimento aos advogados, por exemplo. É um defensor da segurança jurídica, mas considera natural que a jurisprudência sofra modificações, por conta das mudanças que ocorrem dentro dos colegiados. O STJ teve a sua composição renovada nos últimos cinco anos – 15 dos 32 ministros atuais da Corte chegaram ao Tribunal nesse período.

“A jurisprudência não pode ser estanque. Ela deve ser modificada à medida que as leis se modificam, a interpretação se aperfeiçoa e as necessidades sociais se solidificam”, exemplifica Dipp. Para o ministro, há duas vertentes. De um lado, “é necessário ter segurança jurídica para que a população saiba como o Tribunal decide sobre determinada matéria”, mas também é preciso que essa evolução jurisprudencial “possa ser feita de forma bem elaborada, porque não podemos ter uma jurisprudência estanque e dissociada da legislação e da sociedade”.

Carreira

Dipp ocupou dois dos mais importantes cargos do Judiciário: coordenador geral da Justiça Federal, em 2007, e corregedor nacional de Justiça, de 2008 a 2010. Reconhecido como administrador competente e ousado, ele avalia que as experiências lhe deram uma visão ampla do funcionamento da Justiça brasileira, em todos os seus ramos.

“Essa visão é muito importante, não só para o meu enriquecimento pessoal como também para eventuais funções que venham a ser minhas, como a de vice-presidente do Tribunal.” No cargo, Dipp volta a compor o Conselho da Justiça Federal (CJF), agora também como vice-presidente do órgão.

Crime organizado

É impossível pensar no nome de Gilson Dipp sem relacioná-lo ao combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Especialista na área, ele comemora os avanços que matérias como crimes financeiros, lavagem de dinheiro, organizações criminosas e cooperação internacional sofreram nos últimos anos no país.

Dipp participou como coordenador geral da Justiça Federal de uma comissão para interpretar por que, depois de quatro anos de vigência, a lei de lavagem de dinheiro tinha tão pouca aplicação no Brasil.

“A partir daí, surgiu um grupo de trabalho que deu uma visão diferente aos crimes financeiros e que foi o embrião da chamada estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro”, lembra o ministro. Hoje, o alvo do trabalho é também o combate à corrupção, que reúne 70 órgãos nos três poderes da República e no Ministério Público.

Orgulhoso dos frutos desse trabalho, Dipp não exagera ao dizer que o resultado recebe elogios em todo o mundo. Foi a partir daí que o ministro tornou-se o relator da proposta de criação das varas federais especializadas em processamento e julgamento dos crimes financeiros e lavagem de dinheiro. Ele também foi o proponente da especialização de varas para julgamento de crimes praticados por organizações criminosas.

Cooperação internacional

Uma das suas grandes contribuições à reforma do Código Penal, que tramita no Congresso, é a tipificação de organização criminosa. Dipp levantou a bandeira da necessidade de incluir o conceito, que já existia na Convenção de Palermo contra o crime organizado, da qual o Brasil é signatário.

O ministro comemora a consciência que o Judiciário vem nutrindo sobre a importância da cooperação internacional para o enfrentamento desses crimes. Ele credita papel fundamental ao STJ, enquanto homologador de sentenças estrangeiras e cumpridor de cartas rogatórias.

Cabe ao STJ dar efeitos executórios a esses pedidos internacionais que chegam ao Brasil, amparados por tratados. Aí se incluem bloqueios de bens em matéria criminal, autorizações para interceptação telefônica e quebras de sigilo bancário. O ministro considera uma “evolução” a Justiça penal já não estar apenas sujeita à legislação ordinária do país, mas consciente de que deve cumprir, também, os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Corrupção

Mas o ministro adverte que essa “evolução” no pensamento da Justiça brasileira não é suficiente para fazer a corrupção recuar. “Não é apenas uma lei penal bem feita que vai solucionar os problemas estruturais do Brasil quanto à corrupção. É preciso implantar políticas públicas que estejam inseridas nos três poderes”, aconselha.

Para Dipp, o Legislativo deve ser atuante e elaborar leis específicas; o Judiciário deve ser mais célere no exame dessas questões; ao Ministério Público devem ser dadas melhores condições de elaborar boas ações penais; e, principalmente, a polícia deve ter autonomia e recursos financeiros para promover uma boa investigação.

“A lei é apenas a plataforma, a mola propulsora que vai detonar uma série de outras providências que não dependem apenas do Judiciário”, diz o ministro, que vê na sociedade brasileira “uma sensação de insegurança e impunidade”. Dipp acredita que o país está no caminho certo – tem os instrumentos, a consciência e a cobrança da sociedade. Mas ele é realista: “Nunca serão completamente erradicadas a corrupção, a impunidade e a sensação de insegurança. Isso não acontece nem nos países mais desenvolvidos.”

Filtros recursais

Dipp não se diz tão preocupado com o número de recursos que chegam ao STJ, mas com a deformação pela qual o sistema processual passa. Para o ministro, o volume de processos é uma consequência da grande confiança da sociedade no Judiciário. “Acontece que o nosso sistema processual constitucional está desvirtuado”, critica.

A função básica do STJ é dar efetividade e aplicação à lei federal e interpretá-la de modo uniforme para que tenha repercussão nos tribunais estaduais, nos tribunais regionais federais e na Justiça de primeiro grau. “Uma certa deformação do sistema processual fez com que o STJ, muitas vezes, estivesse agindo como terceira instância do Judiciário”, lamenta.

Dipp entende que um exemplo típico disso é o uso do habeas corpus como substitutivo de todo e qualquer recurso, desde o recurso ordinário, a apelação, até o recurso extraordinário para o STF. “O habeas corpus não pode ser banalizado, é uma pérola a ser conservada para ser utilizada de maneira adequada. Tudo o que se banaliza, se desperdiça em termos de qualidade e de importância”, lamenta.

O ministro acredita que a criação de filtros processuais não evitará que os processos subam, mas contribuirá para que o sistema funcione: “É preciso que o primeiro e o segundo grau de jurisdição, que estão muito mais próximos da população, tenham efetividade.”

Ao STJ, chegariam apenas questões que Dipp chama de “macro”. O ministro pondera que toda medida que fortaleça o sistema processual traz benefício para a população, porque, por consequência, haverá diminuição na carga de processos.

A proposta do STJ de criação de um mecanismo de relevância da questão federal – uma espécie de repercussão geral – está nas mãos do Executivo para encaminhamento ao Congresso. O ministro Dipp acredita que esse é um tipo de medida que pode facilitar a eficácia da prestação jurisdicional e, consequentemente, a celeridade.

“O que a população reclama é a celeridade. E a falta de celeridade também é decorrência desse sistema que é inapropriado na sua prática, até mesmo pelo excesso de recursos e pela permissividade na sua admissão”, critica. Mas ressalva: “Isso não quer dizer, de modo nenhum, que a ampla defesa e o contraditório possam ser de qualquer forma deturpados.”

Qualidade das leis

O ministro admite: não é fácil ser juiz num país que tem, reconhecidamente, leis de tão baixa qualidade – confusas e até inconstitucionais. Em 2008, estatística do STF apontava que quatro de cada cinco leis questionadas eram declaradas inconstitucionais.

“Temos uma profusão de leis, muitas delas se sobrepondo umas às outras, causando dificuldades não só ao Judiciário, mas a todos os operadores do direito e ao próprio cidadão, que não consegue compreender o sistema legal, quais são seus direitos e os deveres que lhe são atinentes.” O ministro critica as chamadas “normas penais em branco”, leis que remetem a sua aplicação para outras leis e às vezes até para atos normativos que não têm a força nem a natureza de leis.

Código Penal

A ideia da comissão de juristas que presidiu durante sete meses foi fazer do Código Penal o centro do sistema penal, com uma linguagem inteligível ao cidadão. “O cidadão comum vai entender de forma clara os seus direitos e o que o estado considera lesivo à sociedade, em termos penais. Ele vai ter uma noção mais ampla de todos os tipos penais que podem influenciar a sua vida, o que o estado permite e não permite fazer”, assegura Dipp.

Mais de 120 leis extravagantes ou extraordinárias, que dizem respeito à matéria penal, e em especial ao Código Penal, foram analisadas pela comissão, num trabalho exaustivo que reuniu pessoas oriundas da magistratura, da advocacia, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da universidade. “Revogamos leis e tipos que não tinham mais sentido e trouxemos para o código tipos penais consentâneos com a realidade de hoje, voltados para o futuro”, diz o ministro.

Dipp acredita que o Código Penal é a lei mais importante depois da Constituição, porque define os limites do estado na invasão do direito mais essencial do cidadão, que é a sua liberdade. Nenhum tabu deixou de ser enfrentado – uso de drogas, homofobia, aborto, eutanásia, ortotanásia, racismo. A comissão fez todo o seu trabalho publicamente e o ministro, até então protagonista, virou espectador. “Essas questões polêmicas agora vão ser enfrentadas no parlamento, que é o repositório de todas as diferenças culturais, religiosas, filosóficas, econômicas, num país tão desigual, tão diferente e tão peculiar como é o Brasil.”

Comissão da Verdade

Nos próximos dois anos, quando ocupará a vice-presidente do STJ, o ministro Dipp acumulará a função de coordenador da Comissão da Verdade. Instalada pela Presidência da República em maio de 2005, o grupo de sete integrantes vai reconstruir o passado recente, investigando violações aos direitos humanos.

Gilson Dipp diz que o convite para integrar a comissão era irrecusável: “Nenhum país se consolida democraticamente na plenitude se o seu passado não for bem compreendido”.

“A comissão, no Brasil, foi criada tardiamente, mas temos uma grande vantagem, porque poderemos aproveitar o trabalho de duas comissões – de anistia e de mortos e desaparecidos –, com uma gama de documentos que estão no arquivo nacional e nos arquivos estaduais”, destaca.

Com isso, Dipp afirma que a comissão não está começando do zero, apesar de ter de reformular o que foi apurado e iluminar o que não foi ainda desvendado. “Queremos fazer, principalmente, recomendações para que os erros cometidos no passado não se repitam no presente e no futuro”, promete.
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