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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Por menos processos, Justiça Restaurativa coloca vítimas e agressores frente a frente para resolução de conflito

Foto: Reprodução / Ilustração

Por menos processos, Justiça Restaurativa coloca vítimas e agressores frente a frente para resolução de conflito
Dois amigos e vizinhos de uma vida inteira acabaram se desentendendo por conta dos latidos dos cachorros de um deles, em um bairro de Cuiabá. Os dois se xingaram, trocaram ameaças e o caso foi parar na Polícia e, depois, no Juizado Especial Criminal. O que poderia ter ficado anos correndo na justiça e terminado com um dos dois – ou ambos – condenado, no entanto, foi resolvido de outra forma, por meio das técnicas da ‘Justiça Restaurativa’. Por fim as denúncias foram retiradas e a amizade voltou, com direito a churrascos aos finais de semana.

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Presente no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a Justiça Restaurativa apresenta uma nova alternativa para tratar processos criminais. A história dos dois amigos foi presenciada pela juíza da Terceira Vara Especializada de Família e Sucessões da Comarca de Várzea Grande, Jaqueline Cherulli (foto abaixo), e foi uma das muitas em que a técnica deu certo.

Segundo a enciclopédia jurídica da PUC, a Justiça Restaurativa (JR) é “uma técnica de solução de conflito e violência que se orienta pela criatividade e sensibilidade a partir da escuta dos ofensores e das vítimas”. Cherulli explica que a ferramenta é “baseada em princípios próprios, mas com modelos distintos de atuação, destacando o modelo vítima-ofensor e o modelo de processos circulares de construção de paz”.

O principal objetivo é, ainda de acordo com a juíza, “trocar as lentes do modelo retributivo e punitivo para um modelo de relação dialógica, restaurativa e pertencida, onde todos têm vez e voz para narrar e escutar as histórias contadas com o Eu verdadeiro, bom, sábio e poderoso”. Ou seja: quando um crime é cometido, ao invés de buscar apenas a punição, a JR tenta resolver o conflito por completo, ouvindo os anseios da vítima e tentando fazer com que quem cometeu o delito compreenda onde errou e de que forma pode se redimir.

A JR pode ser utilizada tanto em casos de menor potencial ofensivo como os de maior potencial ofensivo. Recentemente, a série “Crime e Castigo”, idealizada por Branca Vianna, Flora Thomson-DeVeaux e Paula Scarpin, falou sobre o tema e trouxe exemplos de uma vítima de estupro e um caso de atropelamento em que a técnica foi utilizada (veja AQUI).

No TJMT, segundo Cherulli, todos os casos que chegaram até a JR obtiveram sucesso. “Nós consideramos os casos que não deram certo aqueles em que as pessoas declinaram de pronto, na fase do convite, para participar do pré-círculo que é a entrevista inicial, elas já não queriam saber. Elas queriam que o processo caminhasse dentro dos padrões tradicionais e assim foi feito. Elas não se deram nem a oportunidade de conhecer o novo procedimento. Então esses casos nós consideramos como aqueles inexitosos”, contou.

Como funciona?

Segundo o Centro de Estudos Avançados de Governo e Administração Pública da Universidade de Brasília (UnB), o procedimento restaurativo é dividido em três etapas: Pré-Círculo, Círculo e Pós-Círculo. A realização do encontro (círculo) está organizada em compreensão mútua, autorresponsabilização e, por fim, acordo.

Pré-círculo: Propicia e organiza as pré-condições que permitirão a convergência de todos os participantes de círculo em torno de um mesmo fato. Os participantes são convidados pessoalmente ou através de contatos telefônicos ou correspondência.

Círculo: Propicia que as pessoas possam falar e serem ouvidas, com respeito, esclarecendo suas dúvidas e anseios sobre o fato que iniciou o conflito, e definido os termos de um acordo voltado à reparação direta ou indireta do dano e à integração social do ofensor.

Pós-Círculo: Objetiva verificar o cumprimento das ações e o grau de restauratividade alcançado com relação a todos os envolvidos, além de ressignificar a ação cumprida, e ou adaptar o acordo a novas condições

Para entender de forma prática, vale voltar no caso dos amigos que brigaram por conta dos latidos dos cachorros. Segundo Cherulli, inicialmente, no “pré-círculo”, ficou claro que havia também uma dívida antiga entre os dois. Ambos aceitaram passar pela JR, o autor da ação se responsabilizou pela autoria e o outro reconheceu tudo o que tinha feito. A vítima concordou em participar, e ambos asseguraram que não tinham medo de ficar na presença um do outro e isso não lhes causaria danos, além de que conseguiriam se manter em equilíbrio.

Depois disso, eles foram para o “círculo”, em que, junto a um mediador, ambos falaram sobre o que tinha acontecido, se responsabilizaram e conseguiram chegar a um acordo. “O círculo foi um dos mais emocionantes, porque eles choraram, recordaram o tempo que passaram juntos, os períodos áureos dessa amizade, como eles se auxiliavam nos momentos de dificuldades, e agora por causa de cachorro eles tinham se desentendido”, lembra a juíza. “Eles choraram, riram, se perdoaram, perdoaram as dívidas, pediram no processo para que o juiz extinguisse a ação e saíram de lá abraçados”.

O “pós-círculo”, que é feito para saber se a situação continua pacificada depois, aconteceu no mês seguinte e, neste caso, os dois ainda continuavam a amizade. Mas nem sempre é assim. Cherulli lembra de outro caso de um casal divorciado em que a mulher e a ex-sogra haviam ameaçado e difamado o ex-marido (e ex-genro).

O processo todo aconteceu e correu bem, mas no pós-círculo, ficou claro que eles não tinham conseguido se manter sem brigas. Neste caso, um novo círculo foi realizado. “Depois, nessa segunda etapa, eles cumpriram integralmente o espírito de boa convivência, o modo de se tratarem, a maneira de pegar a criança, a maneira de se receberem um na porta da casa do outro em consideração à filha, enfim, aquele problema da ameaça se tornou menor diante dos interesses dessa criança a quem todos amavam”, conta Cherulli.

De acordo com a juíza, o trabalho realizado extrapola o delito praticado. “Ele busca realmente ressarcimento de danos da vítima, o atendimento das necessidades de todos os envolvidos, com apoio da comunidade, e a responsabilização consciente do ofensor. Isso é bem importante de a gente entender”.

Não é acordo?

Apesar de se assemelhar aos “acordos judiciais” existentes, a Justiça Restaurativa traz algumas diferenças essenciais. Em primeiro lugar, segundo Cherulli, além da vítima e do ofensor ela inclui a comunidade como apoiadora. “O círculo restaurativo, por exemplo, é conduzido pela pessoa do facilitador, devidamente treinada e capacitada para este momento, onde se busca compreender as reais necessidades das vítimas e que permite os ofensores compreenderem as causas e consequências de seu comportamento assumindo a responsabilidade pelo ato, de forma efetiva”.

O objetivo, aqui, não é só a punição do Estado diante de um ato infracional, mas sim a reparação do dano psicológico à vítima. Já no acordo entre as partes no modelo convencional, o propósito é por fim ao processo, e não ao problema.

“A diferença perpassa pela troca do modelo retributivo que olha para o autor para uma restaurativa, que valoriza a vítima em sua integridade, dignidade e potência humana. Os acordos em JR são consensuais e construídos pelas partes e não impostos pela justiça formal, todos na JR têm algo a contribuir para a melhor solução do conflito”, completa a juíza.

Aplicação

Além dos casos levados ao TJ, a JR também tem sido implantada no Centro de Atendimento Socioeducativo de (Case), o Complexo Pomeri, onde estão internados os adolescentes infratores. Cherulli conta que, apesar da maior burocracia, já foi possível concluir a etapa de pré-círculo. Foi apresenta a possibilidade a quinze casos. Destes, treze foram para atendimento restaurativo, nove aceitaram fazer o pré-círculo. Destes nove, seis vão para o círculo e três serão atendidos pelo círculo de “restauração de paz”.

“Seis vão para o círculo de resolução de conflitos penais, e os outros três que ainda não se sentiram à vontade para estar diante do seu ofensor, aceitaram a proposta de passar por círculos de construção de paz, para depois, então, decidir se vão ou não ter condições de ficar à frente dos seus ofensores”, explicou a juíza. “Nós ficamos muito contentes com isso, porque apenas dois ainda não tiveram condição de confiar neste trabalho para resolver seus problemas em consenso com as partes interessadas”.
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