Poucos projetos políticos conseguem unir, em uma só voz, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), associações de magistrados, economistas, sindicatos de trabalhadores e movimentos alinhados à extrema esquerda. A Proposta de Emenda à Constituição 287, que prevê a reforma da previdência, é um destes casos. Com popularidade tão baixa quanto a do presidente que a propôs, Michel Temer (PMDB), a PEC exige idade mínima para aposentadoria a partir dos 65 anos, sendo 49 anos de tempo de contribuição; iguala homens e mulheres, trabalhadores do campo e da cidade e dá fim a aposentadoria especial de professores e policiais militares.
Para o especialista Jonas Albert Schmidt a PEC é uma “crueldade” e coloca nas costas do trabalhador a
responsabilidade por uma crise financeira forjada por cálculos manipulados. O resultado prático é terrível: boa parcela da população jamais verá sua aposentadoria integral caindo na conta, morrerão antes.
Schmidt advoga desde 2003. Antes atuou como funcionário público no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) e dedica-se há 14 anos à previdência pública. Fez mestrado na área na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com temporada em Coimbra, Portugal, e desde 2015 compõe a Comissão do Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso (OAB-MT), onde assumiu, no ano passado, a vice-presidência. Ele conversou com
Olhar Jurídico e explicou detalhadamente os problemas apresentados por este projeto.
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Jonas Albert Schmidt, o senhor se reuniu em Brasília, em nome da OAB-MT, com outras entidades para discutir a PEC 287, correto?
“Sim, ano passado nos reunimos em Brasília, no Conselho Federal, e naquele momento criamos um Fórum Permanente e reunimos diversas comissões e Seccionais da OAB. Lá debatemos a questão da reforma que sabíamos que iria vir. Naquele momento estávamos em governo de transição, provisório e presidente interino, mas já percebíamos que a bandeira principal dele seria a reforma da previdência. O questionamento era: o que iria vir? O que seria essa reforma? Eu escrevi um artigo para o Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (Conpedi), previa que os militares ficariam de fora das reformas e, de fato, eles ficaram de fora. Reunimos-nos em Brasília novamente, no dia 31 de janeiro e 01 de fevereiro deste ano. Tivemos uma audiência pública nacional e chamamos especialistas da área, no caso eu também. A ideia era propormos ideias substitutivas para a PEC 287”.
Por quê?
“Do jeito que a PEC foi proposta pelo governo, a OAB não aceita, assim como as 50 entidades que estiveram presentes na reunião e assinaram essa carta aberta. Porque será o trabalhador quem irá assumir a responsabilidade desse questionável déficit?”
Explique:
“Pois vários estudos, de entidades séries e teses de doutorado comprovam que a receita é superavitária. Eu mostro isso em minha dissertação de mestrado. Traduzindo: não é este governo atual, é desde quando a previdência foi criada na forma como é hoje, em 1988, existe todo um discurso em cima da principal política social brasileira que é a previdência social, a seguridade como um todo (previdência, assistência e saúde, um tripé). Como ele é mostrado para a população: orçamento da previdência. Onde a temos? No artigo 195 da Constituição Federal. Lá está toda a base do orçamento, que vai desde a contribuição do trabalhador, da empresa, loteria esportiva, PIS, COFINS, o jogo de futebol contribui também, etc. A base é muito grande. Mas, como isso é apresentado à população? ‘Olha: o que foi arrecadado dos trabalhadores e o que foi arrecadado dos empresários. Ponto. E olha o que tivemos de gastos com benefícios’. Ora, é claro que vai dar um valor maior, aí não fecha a conta. Mas, digita lá no site de busca: fluxograma de caixa do INSS. É superavitária todos os anos. Claro, o último que está disponível é o de 2015, caiu de R$ 60 bilhões para R$ 11 bilhões. Sim, devido ao desemprego, você tem uma arrecadação menor, pois diminuiu o número de empregos formais. Porém, se pegar toda a base de financiamento da previdência e todos os benefícios concedidos, com certeza o valor será superavitário. Haverá sobra”.
É aí que entra a Desvinculação de Receitas da União (DRU)?
“Sim, desde 1994 ela existe e o atual governo conseguiu no ano passado, além de aumentá-la de 20% para 30%, prorrogá-la até 2023, com discurso de que o país é ingovernável sem a DRU. Se a previdência é deficitária, porque você desvincula 30% da Receita? O grande questionamento que a OAB propõe é: não basta pegar um projeto, uma emenda constitucional, aprová-la em menos de seis meses e botar goela abaixo do trabalhador sem uma ampla discussão com a sociedade. Porque cortar o benefício do trabalhador se somente em Mato Grosso empresas devem milhões à previdência social?”.
O que o governo ganha com isso?
“Superávit primário, contas em dia. Por isso eles falam em governabilidade com ou sem DRU. Mas quem precisa, nesse caso, pagar o pato é o trabalhador, que precisará contribuir por 49 anos para receber uma aposentadoria integral, isso é um absurdo. É uma crueldade sem tamanho, é a PEC da crueldade”.
Foge à expectativa de vida?
“A expectativa de vida no Brasil é relativa. No Sul e no Sudeste ela é uma, no Nordeste outra e no Norte e no Centro-Oeste, outra. Se os índices falam em 72 anos a expectativa, você não tem essa mesma expectativa no sertão nordestino. O trabalhador rural no sertão nordestino não tem essa expectativa, lá não chega a 60 anos. Então, se você exige uma idade mínima de 65 e uma contribuição de 49 anos, você jamais terá uma aposentadoria, é uma conta que não vai fechar. A realidade brasileira é muito diferente de uma região para outra”.
Discorra sobre o tópico da Idade Mínima:
“Se você pegar os motivos da PEC 287, eles falam em comparações com outros países, eles adoram fazer isso e não é de hoje. Vamos então fazer uma comparação: a França tem uma idade mínima de aposentadoria de 67 anos de idade. A França vive outra realidade, o jovem francês estuda, faz faculdade, faz mestrado logo em seguida, como estudo emendado. A opção que o jovem europeu tem depois disso é: ou eu começo a trabalhar ou sigo em um doutorado. Você entra no mercado de trabalho com 25 anos, 26 e uma escolaridade elevada. Você pode chegar aos 67 anos contribuindo com 30 e tantos anos. A conta fecha!”.
E no Brasil?
“No Brasil a realidade é outra, com 13, 14 ou 15 anos alguns jovens começam a trabalhar. Existem as exceções? Sim, as exceções das exceções, aqueles que tiveram condições de estudar e se preparar para o mercado de trabalho, mas, repito, são exceções. A grande maioria vai ter que contribuir por muito tempo, é uma crueldade sem tamanho, ele vai passar uma vida inteira contribuindo. Isso diretamente, pois indiretamente ele também contribui, mediante, por exemplo, o custo do cafezinho que ele toma. Enfim, é muita crueldade e coloca a responsabilidade em cima do trabalhador”.
Fale sobre Igualar Homem e Mulher na previdência:
“Outro absurdo, a realidade brasileira não é igual à de outros países. A mulher no Brasil ainda tem dupla ou tripla jornada, todos sabemos disso. Mulher trabalha mais. Ela vive mais? Sim, mas por outros motivos, elas se cuidam mais, tem uma cultura de ir ao médico, como o homem brasileiro não tem e por isso vivem mais, mas o desgaste físico e psicológico da mulher é muito maior que do homem. A sociedade brasileira não está preparada para entender que não é só mulher que tem que cuidar da casa e do filho. Não dá para igualar com outros países”.
E as aposentadorias especiais, como de professores e policiais militares?
“O projeto quer cortar, querem retirar as aposentadorias especiais. Professor não aposentará mais especialmente. A gente prefere usar a expressão ‘aposentadoria do professor’, não é nem aquela especial, expressão usada quando falamos de atividade de risco. Não, 'aposentadoria do professor'. Ele será cortado pela reforma, de modo que não diminuirão mais os 05 anos de tempo de contribuição para poder aposentar. Ora, 90% das professoras aposentadas são mulheres (principalmente na educação infantil, elas são maioria absoluta), elas aposentam com 25 anos de contribuição e 50 de idade. Isso com a PEC será cortado”.
Isso é correto?
“Ora, a realidade mostra o seguinte: quando uma professora aposenta aos 25 anos de contribuição ela já está em um desgaste tão grande quando atingem a aposentadoria do professor, isso quando não aposentam antes por invalidez! Isso é uma realidade, muitas aposentam por invalidez, doenças físicas, psicossomáticas, depressão, é algo sério e gravíssimo. Querem tirar essa aposentadoria e igualar homem e mulher. É uma crueldade!”.
E sobre igualar as regras para o homem do campo e o da cidade?
“Outra crueldade. Sempre dou o seguinte exemplo: pegue um trabalhador da cidade, um que trabalha no ar condicionado, com 50 anos de idade, e agora um trabalhador do campo com 50 anos de idade, ponha um do lado do outro. É visível, você não precisa falar mais nada, podemos até acreditar que um seja pai do outro. É o desgaste que se tem na atividade do campo. Imagina exigir que um trabalhador do campo atuasse até os 65 anos de idade para poder aposentar. Ou seja, até os 65 anos trabalhando para poder receber o merecido descanso após uma vida inteira de contribuição. Sem falar que querem incluir a contribuição direta à atividade deles, assim como é na cidade, mas a realidade é outra. A maioria das pessoas que trabalham no campo estão em atividade de âmbito familiar, não há produção de larga escala e safras, o que há muitas vezes é uma agricultura de subsistência, que nem sempre existe venda daquele produto. Como você vai exigir contribuição? Quer dizer, se exigem um tempo mínimo de contribuição, por alguns momentos a pessoa não vai contribuir, distanciando-o ainda mais de sua aposentadoria. É uma série de absurdos!”.
E as Forças Armadas, como ficam?
“Não mexeram. Claro que não estou incluindo aí os policiais militares, estamos dizendo Forças Armadas. Nenhum governo se atreveu a mexer nesse grande gargalo. A justificativa que eles dão é que eles não se aposentam, eles vão para reserva e a qualquer momento estão à disposição do país. Ora, nós não somos um país faz guerras. Qual foi a última guerra em que o Brasil se envolveu, a Guerra do Paraguai? É uma justificativa descolada da realidade. Eles se aposentam sim, a maioria com pouco mais de 50 anos, e com valores altos. Mas ‘ah, quanto ganha um marechal de alta patente, RR 25 mil ou R$ 30 mil?’, tudo bem, mas essa quantia se comparada à realidade dos trabalhadores brasileiros é alta, eles ganham muito”.
E a pensão por morte?
“Não alteraram, mas na pensão dos demais trabalhadores eles já alteraram. Tudo bem, em alguns casos é louvável você pagar uma pensão vitalícia para um ou uma pensionista, mas com 20 anos de idade receber pensão vitalícia é algo que realmente deveria ter sido revisto. Hoje para quem tem até 44 anos de idade a pensão não é vitalícia, dura cerca de 15 anos. A idade de corte para empregabilidade no Brasil é de 50 anos, quem está no serviço público tem estabilidade e isso não é um problema, agora quem está na iniciativa privada, se você ficar desempregado, para conseguir outro emprego, isso é um agravante! E acrescente que se houver um intervalo de desemprego, o que é muito comum, você já não poderá mais se aposentar com 65 anos. Se você colocar gênero e escolaridade no meio, pior ainda. Mulher de 50 e poucos anos, desempregada e com pouca escolaridade, não conseguirá recolocação no mercado de trabalho formal. Pode até conseguir emprego, mas um emprego informal, que não contribui à previdência”.
Você escreveu um artigo sobre isso?
“Sim, escrevi um artigo para uma revista de políticas públicas do Maranhão. Nele eu citei um pequeno exemplo: imagina uma mulher de 43 anos cuja atividade principal seja ainda cuidar da casa, dos filhos e do marido, o único provedor da família neste exemplo (uma realidade bem comum, embora não seja a regra, ainda bem que não!), se essa mulher vem a ficar viúva, seu provedor morre, pelas regras atuais ela vai receber durante 15 anos a pensão. Essa mulher não sabe disso. Ela vai receber a pensão dela, de um salário mínimo, por apenas estes anos. Quanto essa mulher estiver com seus 60 anos o governo vai fazer simplesmente o que? Corta o benefício dela. O que vai ocorrer? Teremos uma mulher de 60 anos, sem escolaridade, vai acontecer o que com ela? Está vendo o impacto social que uma simples alteração na legislação cria? A realidade está alterada, assim está funcionando desde 2015. Mas o governo não leva em consideração as realidades de cada região, de cada Estado. Cortar a pensão de quem perdeu seu marido aos 20 anos, tudo bem, ela terá uma vida inteira ainda para estudar e trabalhar, e outras realidades?”
A PEC 287 é resultado de um estudo grosseiro ou de má fé?
“A ideia é criar superávit primário, promover uma arrecadação bilionária e ter a saída do dinheiro para pagamento de benefícios menores. Impor teto para servidores públicos, afinal hoje apenas servidores federais possuem teto, estaduais e municipais não. Vão impor o teto do regime geral, cerca de R$ 5 mil. Servidor que receber mais do que isso terá que contribuir para o regime complementar. Esse regime complementar não será gerido pelo governo, fica na mão dos bancos. Temos um problema para o trabalhador, que não terá garantia. Que garantia um banco privado te dá? E se esse banco quebrar, que garantia você tem? O Banco Central vai garantir essas aposentadorias complementares? Não mesmo! Estamos falando de bilhões que entrarão no mercado financeiro, um mercado altamente especulativo, que não garante nada para o trabalhador no futuro. Um jovem servidor público hoje, aos 20 e poucos anos, contribuir até os 60 para um regime complementar de boa parte da renda dele, caso receba um salário bom: que garantia ele tem que daqui a 30 anos esse dinheiro virá de volta de uma instituição privada? Está vendo o interesse econômico em cima disso? Sem contar que o governo economiza com benefícios. Governo não gosta dessa palavra, eles preferem a palavra ‘gasto’. É um investimento em políticas sociais, as pessoas contribuem para isso, aposentadoria não é presente de governo, é um direito. Aposentadoria só recebe quem contribui diretamente com o sistema”.