Peter Piot, o único chefe do programa de Aids da ONU em seus 13 anos de história, está se aposentando nesta quarta-feira. Ele é considerado o maior responsável por fazer chefes de Estado compreenderem as ramificações políticas, econômicas e sociais de uma pandemia que está entre as piores da história.
Embora o número de infectados e mortos tenha aumentado durante seu mandato, Piot, de 59 anos, disse numa entrevista que havia atingido numerosos sucessos. Ele os atribuiu ao fato de basear recomendações de políticas em evidências científicas.
Piot afirmou que seu programa fez crescer a preocupação pública em relação à Aids; aumentou vastamente o dinheiro gasto para tentar acabar com a pandemia; reduziu o preço de medicamentos anti-retrovirais para milhões de infectados em países pobres; e deu voz a grupos socialmente marginalizados, como homossexuais e usuários de drogas injetáveis, que correm grandes riscos de contrair Aids, mas não têm praticamente nenhuma voz.
Piot lembrou que, quando se tornou diretor executivo em 1996, cerca de US$ 250 milhões eram gastos anualmente para lutar contra a doença em países em desenvolvimento. "Tentar aplacar uma epidemia global com esse valor é impossível, mas era isso que queriam de nós", contou. O número atual é cerca de US$10 bilhões, e Piot disse que “se tivéssemos há dez anos o dinheiro que temos hoje, não teríamos uma epidemia tão fora do controle.”
Frustração
O programa de Piot nasceu em parte de uma disseminada frustração com a falta de coordenação entre as agências da ONU preocupadas com a Aids – particularmente a Organização Mundial da Saúde, que era responsável por monitorar o alcance global da doença. Na segunda metade da década de 90, a liderança da organização era largamente criticada por uma aparente incapacidade de lidar com uma pandemia com a complexidade social e a dimensão da Aids.
Então, governos membros criaram um programa para coordenar o papel da ONU no combate à Aids. O programa tem 10 co-patrocinadores, todos eles partes do sistema da ONU. Piot, que ajudou a descobrir o vírus Ebola e foi um dos primeiros cientistas a estudar a Aids, foi nomeado diretor executivo por Boutros Boutros-Ghali, o então secretário-geral da ONU.
"Quando começamos, a Aids definitivamente não estava na agenda política mundial, mas agora está", disse Piot por telefone enquanto participava de encontros sobre a Aids na África, onde a doença atingiu o maior grau. Piot ajudou a ONU a caracterizar a Aids como um assunto de segurança global e tornar a doença o foco da primeira sessão da Assembléia Geral já dedicada a qualquer assunto de saúde. E ele ajudou a colocar a Aids na agenda de fóruns econômicos mundiais.
Como diretor executivo, segundo conta, ele logo percebeu que os cientistas, sozinhos, nunca conseguiriam derrotar a Aids. O sucesso também exigiria forte apoio político de líderes governamentais e grupos civis. A ONU lhe ofereceu plataforma e acesso aos principais líderes mundiais. Ele viajou o mundo – 23 países somente em 2008, e inúmeros outros ao longo de seu mandato. Com sua persuasão moral, seu conhecimento científico e a experiência como ativista político na Bélgica, sua terra natal, ele conseguiu influenciar a visão de muitos chefes de estado.
Sete instrumentos
Sua posição requer uma palheta de habilidades, disse Piot. O diretor precisa de grande conhecimento científico sobre doenças virais e ramificações sociológicas; apreciação das realidades políticas e econômicas de países ricos e pobres; e as habilidades diplomáticas para falar com um papa, executivos da indústria farmacêutica e ativistas da Aids, entre muitos outros. Piot afirmou estar confiante de que seu assistente e sucessor, Michel Sidibe, de Mali, tem as habilidades para manter a Aids como um assunto de saúde global.
Os críticos sustentam que a ONU não deveria ter criado um programa separado para uma única doença, mesmo sendo uma pandemia, porque um foco limitado pode diminuir a atenção a outros problemas de saúde. Piot responde que, sem os esforços de seu programa, milhões de pessoas teriam morrido. Apesar de uma agência separada não parecer a abordagem mais racional, disse ele, "ela funciona, é isso que importa". E acrescentou que “organizações bem focadas exercem um impacto muito maior do que aquelas com objetivos mais amplos.”
A Aids salientou a dificuldade de se entregar medicamentos antiretrovirais a pacientes de países pobres, assim focando a atenção mundial em sua principal causa: falta de infra-estrutura de saúde eficiente. Essa compreensão teve um inesperado benefício, segundo Piot: "a atração de mais dinheiro para fortalecer esses sistemas de saúde". Realmente, em muitos casos, o financiamento da Aids foi o único investimento que esses sistemas receberam.
Piot visita o Hospital Central de Kigali, em Ruanda (África Oriental) (Foto: NYT)
Um ponto de virada na direção do programa de Aids da ONU aconteceu no primeiro ano de Piot como diretor executivo: a comercialização de poderosas combinações de remédios que permitem a muitos portadores do HIV levarem vidas praticamente normais. Os medicamentos, caros demais até mesmo para alguns pacientes de países ricos, estavam muito fora do alcance para dezenas de milhares de infectados do mundo em desenvolvimento.
No começo, disse Piot, "as agências de desenvolvimento e as comunidades tradicionais de saúde pública eram radicalmente contra tornar o tratamento disponível a países pobres". Embora ele estivesse inicialmente cético a respeito de negociar com a indústria para baixar o custo dos remédios para países pobres, encorajou membros da equipe mais otimistas a tentar de qualquer forma, "porque ninguém mais faria isso". Negociar preços menores era "em grande parte trabalho da ONU, até que a Fundação Clinton chegou para baixar ainda mais os custos", disse Piot.
Estimativas infladas
Piot suportou críticas, inclusive de haver publicado estimativas infladas do número de pessoas infectadas com HIV nos primeiros anos. "Estávamos errados; superestimamos o potencial da pandemia na Ásia, particularmente na Índia", ele respondeu. "Mas subestimamos diversos países africanos, e definitivamente subestimamos a Europa Oriental, onde não vimos que pandemias se formavam na Rússia e Ucrânia."
No entanto, ele definiu como "absurdas" as acusações de alguns críticos que sustentavam que ele teria deliberadamente inflado os números para aumentar o perfil da Aids. "Temos painéis de revisão, que incluem epidemiologistas reconhecidos de instituições de pesquisa e saúde pública", disse ele. "Cada estimativa envolve centenas de pessoas, e qualquer uma delas teria denunciado esforços para distorcer os números." Estimativas atuais afirmam que 33 milhões de pessoas vivem com HIV e 20 milhões morreram desde que a doença foi identificada nos Estados Unidos, em 1981.
Trabalhar com líderes políticos era um desafio constante, disse Piot. Como os estados membros dirigem a ONU, criticar qualquer um deles pode ser complicado, senão impossível. Enquanto o HIV destruía a África do Sul, Thabo Mbeki, seu presidente durante grande parte do exercício de Piot, praticamente negou que o vírus causava a Aids. Piot não conseguia convencê-lo do contrário. Similarmente, Piot gostaria de ter conseguido persuadir a Rússia a permitir o tratamento de substituição com metadona para usuários de drogas injetáveis, que estão ajudando a gerar uma pandemia de Aids no país.
"Isso são erros?", perguntou. "Bem, certamente são fracassos, coloquemos dessa forma, no sentido de que não fui capaz de convencer as lideranças locais a tentar uma abordagem científica." Por outro lado, ele continuou, na China, "a principal liderança mudou completamente sua política sobre uso de drogas injetáveis, e isso foi em 2005."
Num mundo ideal, disse Piot, ele faria com que os líderes criassem grandes campanhas nacionais e mundiais de prevenção à Aids. Esse esforço exigiria manter o reconhecimento da Aids, usando esforços de marketing para divulgar o uso de preservativos; criar incentivos para que as pessoas façam o teste de HIV; organizar clínicas de circuncisão em alguns países; e motivar cientistas a trabalhar com maior proximidade e compartilhar dados para desenvolver uma vacina contra o HIV. "O que falta na prevenção da AIDS não é o ‘o que’," disse ele. "A questão é ‘como’ organizar tudo".
Em maio, Piot se mudará para o Imperial College de Londres para criar um instituto de saúde global. Um dos objetivos é educar uma geração mais jovem de estudantes para aplicar as lições da batalha contra a Aids em outras doenças, incluindo algumas crônicas e não-infecciosas – como doenças do coração, que não são bem estudadas nos países em desenvolvimento. Apesar das dificuldades financeiras de se iniciar um novo programa a essas alturas, concluiu, "há tanto interesse na saúde global que estou bastante otimista".