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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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"Era uma criança cuidando da outra": histórias mostram por que é tão difícil ser menina no Brasil

Relatório de ONG apontou o País como o pior da América do Sul para ser uma jovem


“Era uma criança cuidando da outra”. Isso é o que diz a vigilante e cuidadora Jussara Santos Vieira. Hoje com 43 anos, ela lembra de quando engravidou aos 15 anos e precisou cuidar de seu primeiro filho. Segundo ela, a gravidez na adolescência aconteceu porque ela não tinha liberdade dentro de sua própria casa. Ela conta que não tinha apoio para discutir sobre sexualidade dentro de sua casa e que, para evitar que ela saísse de casa, a mãe a trancava com um cadeado na porta.

— Minha mãe vivia me prendendo. Eu não tive aquela infância e aquela mocidade. Bem antes disso, minha mãe me colocou em um colégio interno. Fui crescendo mais revoltada, ficando rebelde. Quando eu saí do convento eu queria conhecer festa, balada, queria ser diferente.

Jussara, que tinha o sonho de ser dançarina do programa do Chacrinha, nunca conseguiu realizar seu sonho. Ela passava o dia passando roupa e cozinhando e, quando engravidou, passou a trabalhar em casa de família. A mulher diz que sua mãe “batia muito” nela e que, para conseguir “liberdade” de sua casa, resolveu casar: "Eu casei porque eu queria liberdade. Eu queria conhecer o mundo e minha mãe me prendia muito. Eu sonhava muito, mas minha família era muito difícil. Quando me soltava, eu desembestava".

Depois de conhecer o pai de seu filho, ela fugiu de casa e, segundo ela, “foi descobrindo as outras coisas”. Aos 16 anos, ela deu à luz ao seu primeiro filho. Depois dele, veio mais dois. Ao todo, ela teve dois homens e uma mulher. Porém, ela garante que é “mais fácil” cuidar de uma menina: “Eu dou toda a liberdade para eles [filhos], mas eles vão ter que ser alguém na vida”.

Mesmo trabalhando, a então adolescente, com um filho pequeno em seus braços, não “tinha condição de cuidar” de um bebê. Por conta disso, a avó da criança pegou o menino para criar: “Eu não sabia. Eu não tinha noção. Tive o filho, mas não tive experiência”. Jussara diz que, o que mais machuca em toda essa história de sua vida, é o fato de que “as pessoas olham você e te criticam”.

— Eu sofri muito com isso. Para eles, eu fazia porque eu queria. Eu fui muito humilhada. Nunca tive, assim, uma roupa boa. Quando eu tinha, era porque os outros me davam. Hoje, eu não sei me arrumar, não sei me pintar. Eu não sei fazer essas coisas porque eu não tive quem me acompanhasse. Eu era muito criticada. Eu chegava nos lugares e me falavam que eu era feia. Mas acho que não é porque eu sou feia. É por causa da minha cor.

Segundo ela, sua mãe queria que ela fosse lavadeira e que preferia ter filho homem. Jussara diz, com toda a firmeza e certeza que, se ela não tivesse sido tão presa quando adolescente e tivesse mais liberdade para sair e se divertir, ela “não teria engravidado tão cedo”.

— Eu acho que nem filho eu teria. A partir do momento que você sonha, você corre atrás. A partir do momento que te impedem, você não tem outra escolha.

Jussara nasceu no Guarujá, litoral de São Paulo e, hoje, também trabalha com comédia e já fez participações na televisão. Segundo ela, é gratificante fazer os outros rirem e serem felizes. Ela, que não vê seu pai há 17 anos, diz que ele “foi embora para o Norte” quando saiu da vida de sua mãe: “Se eu tivesse meu pai na época [em que engravidei], a minha vida seria diferente. Eu seria mais feliz”. Hoje, Jussara diz que quer “uma realidade diferente para os filhos” e que eles não tenham uma vida como a dela. Ela diz que o sofrimento foi grande durante sua juventude, mas que também “escapou de muitas”. Um exemplo disso foram as vezes que ela conseguiu se salvar, sozinha, de estupros na rua.

— Sempre é a mulher que é a culpada. Nunca é o homem. Mas eu não devo nada para ninguém. Só para Deus. Porque ninguém manda em mim. Eu fui tão mandada [durante a adolescência] que até para o coração eu digo que ele não manda em mim.

A história de Jussara é só mais uma dentro da realidade brasileira. Relatório recente divulgado pela ONG (Organização Não Governamental) Save the Children apontou que o Brasil é o pior país da América do Sul para ser menina. O País aparece em 102º no ranking que tem até 144 países. O Brasil aparece, por exemplo, atrás de nações como Iraque, Índia e Síria. O fato de o nosso país estar tão mal na lista se deve, dentre outros fatores, à gravidez e casamento na adolescência, falta de representatividade na política e estupro.

A assistente jurídica Tabata Alves, de 31 anos, é militante desde 2007 e promove ações para discutir política entre mulheres e membros da comunidade. Ela é estudante de direito e diz que mesmo em sua sala de aula a presença da mulher dentro das discussões políticas “é muito deficiente”. Tabata diz que, a cada dia, tenta se articular mais e mais no campo de políticas públicas para que mudanças possam ser feitas: “O caminho seria dentro do legislativo mesmo. Mas existe uma grande dificuldade. Pouco se discute política”.

Segundo ela, essa articulação é ainda mais desconhecida na periferia. E é isso o que ela quer mudar. Encontros para discutir essa representatividade das mulheres da periferia são promovidos em praças e grupos de estudo se reúnem em sua faculdade aos sábados.

Ela, que é do Morro Doce, na zona oeste de São Paulo, diz que “quando a gente fala de política, a gente se isola. As pessoas não querem falar sobre isso”. Mas ela diz que é importante falar sobre o assunto para que, quem mais precisa, possa exigir políticas públicas que mudem a situação de muitas meninas e mulheres no País.

Tabata também faz diversas ações para tentar ligar a periferia às questões da política. Entre elas está a formação para jovens em vulnerabilidade, revitalização da comunidade e produção de artistas. A representatividade, para ela, é muito importante para trabalhar assuntos inerentes às mulheres como violência contra a mulher, a falta de segurança e salários menores. Porém, ela diz que é preciso cobrar as lideranças políticas para que as demandas sejam atendidas.

— Eu sempre entro em contato [com políticos]. Sempre mando e-mail e vou me movimentando.

A representatividade nos campos políticos, para que ações voltadas às necessidades das meninas sejam colocadas em prática, são importantes para o empoderamento feminino. Esta palavra tem sido usada muito recentemente. Mas o que isso significa em ações, afinal? Seria, de maneira simples, que as mulheres passassem a tomar poder de suas vidas, de seus destinos. Para que isso se torne algo natural, é preciso que as meninas comecem a se enxergar dessa forma desde criança.

O sucesso da rapper MC Soffia, de apenas 12 anos, mostra que a representatividade entre as meninas importa e que as jovens estão buscando, cada vez mais, se posicionarem na sociedade como donas de suas histórias. Em suas músicas, a menina fala sobre o problema do machismo e do racismo e de como é bom ser criança e brincar enquanto ainda há tempo. Resumidamente, a menina é um show de empoderamento para as meninas.

Soffia é um espelho de sua mãe, Kamilah Pimentel. Esta mulher forte e empoderada passa para sua filha ensinamentos importantes sobre feminismo e consciência social. Sobre o relatório, Kamilah diz que “precisa existir mais políticas para essas meninas” e que a educação é fundamental: “Acho que o ensino é a base de qualquer problema seja compreendido e combatido”.

— Gravidez na adolescência aqui no Brasil é muito naturalizado. Infelizmente, acho que o trabalho de orientação sexual nas escolas deveria ser como uma disciplina.

A apresentação da filha de Kamilah, ao lado da rapper Karol Conka nas Olimpíadas foi amplamente elogiada, até por jornais internacionais quando o assunto foi a importância de as mulheres se colocarem como líderes. A apresentação de Soffia foi, como sempre, marcada pela exaltação da beleza negra e pelo feminismo. O Hollywood Life, por exemplo, publicou matéria comparando a música da menina com o som de Drake e Eminem.
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