O tradutor de inglês Fabiano Souza teve sua história compartilhada por sua irmã, a jornalista Julianne Caju, na última segunda-feira (26). Fabiano foi chamado de “assombração” e “urubu” e disse à irmã que sentiu tristeza e raiva ao mesmo tempo. A jornalista disse que não procuraram a polícia porque não acreditam que apenas punindo um indivíduo a situação será resolvida, mas que o problema do racismo é estrutural. Ela contou que fez a postagem com a intenção de trazer a discussão à tona.
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Fabiano contou que teria ido a um bar perto de sua casa, em Cuiabá, e foi abordado por um amigo de seu pai, que começou a chamá-lo de “urubu” e “assombração”.
"Fui comprar cerveja aqui perto de casa. Não vi que o colega de papai estava no bar, mas ouvi: 'Nossa que assombração. O urubu, o urubu'. Ele falava alto e repetiu várias vezes. Eu sabia que era comigo, pois reconheci a voz dele e também por não ser a primeira vez que acontece. Eu não atendi o chamado dele. Até que as pessoas que lá estavam se direcionaram a mim dizendo que era para mim o chamado dele. Eu disse que não era urubu e não fui”.
No entanto o homem continuou a ofendê-lo e Fabiano, já sem paciência foi confrontá-lo.
“Mas ele persistiu: 'Oh assombração. O urubu. O urubu'. Comecei a sentir tristeza e raiva ao mesmo tempo. Decidi ver o que ele queria. Não dei tempo para ele falar, já cheguei falando: 'Sr. ... (falei o nome dele) nós já conversamos sobre isso antes. Conheço o Senhor, tenho carinho e respeito ao Sr. e sua família. Mas meu nome não é urubu e sim Fabiano'. Ele alegou dizendo que não sabia o meu nome. Daí adiante falei mais algumas coisas, pedi licença e saí".
O tradutor de inglês decidiu não procurar a polícia para denunciar o racismo. A irmã dele, a jornalista Julianne Caju, no entanto, fez uma postagem em seu perfil no Facebook contando a história. A intenção dela foi gerar uma discussão sobre o assunto.
“Nós precisamos falar sobre estas questões, nós precisamos dialogar sobre o quanto que chamar alguém de ‘urubu’, chamar alguém de ‘assombração’ ofende e é racismo. E eu e meu irmão ficamos o tempo todo nos perguntando o porquê das pessoas que estavam no bar acharem que os termos usados eram para o meu irmão? É porque a nossa sociedade está acostumada a associar urubu e assombração com negro, carvão com negro, piche com negro, e por aí vai. Até quando a gente vai ficar aturando este tipo de situação?”, disse.
Julianne conta que não procuraram uma delegacia para registrar a ocorrência porque acredita que culpar apenas um indivíduo não resolve o problema do racismo, que é estrutural.
“Eu e meu irmão temos lido muitas coisas a respeito do que envolve as questões raciais. E todas as leituras que a gente vem fazendo mostram que o racismo é estrutural. Nós não acreditamos que dá para ficar culpabilizando um indivíduo, ainda que a gente acredite na Justiça, mas não vai resolver. Não adianta a gente fazer o B.O. para punir um, porque muitas das mazelas humanas são construídas socialmente e elas vão se naturalizando a ponto de as pessoas acharem normal, assim como aquelas pessoas do bar fizeram”.
Após fazer a postagem ela contou que várias outras pessoas também relataram as histórias de racismo que sofreram. Ela passou o dia conversando sobre o assunto e recebeu elogios, mas também críticas.
“No sábado eu fiquei algumas horas fazendo isso, conversei com muita gente e tiveram alguns que me criticaram, falaram que eu estava ‘exagerando’, falando ‘agora tudo é bullying, tudo é racismo’. Jesus nos ensinou que nós estamos neste mundo para rever as coisas que não são boas, porque a gente tem que ficar repetindo o que não é bom? Pode ser que lá atrás as pessoas deixavam passar, mas já chega, dói muito”.
Julianne disse que assim como o irmão, e muitas outras pessoas, já passou por situações de racismo. Assim como Fabiano, ela também não quis culpar uma pessoa.
“Eu sou negra como o meu irmão, eu sei o que ele já passou porque eu também já passei por isso. Foi em um Banco do Brasil aqui em Rondonópolis e eu deixei muito claro quando o gerente do banco me procurou, ele me perguntou o nome do guarda, e eu falei que não sabia o nome, mas eu não queria que ele fosse mandado embora, porque a culpa não é só dele, é o sistema, ele recebeu ordens de que todo negro é suspeito e poderia ser barrado na porta do banco”.
De acordo com a jornalista, ela não quis informar o nome do guarda com a intenção de evitar que o ódio se espalhasse.
“E eu falei ainda que se mandarem o guarda embora, isso faria ele ter raiva de mim e de todo o povo negro, então seria violência gerando violência, e não é assim que a gente resolve as coisa, é com diálogo, com questionamentos, então por isso eu fui para o Facebook, para tentar fazer as pessoas pensarem”.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 72 casos de pessoas que praticaram, induziram ou incitaram a discriminação ou preconceito de raça. No entanto, apenas 15 foram punidas.
O número, no entanto, é menor do que o ano anterior. Em 2016 foram registrados 109 casos do mesmo crime e apenas 17 foram punidos.
Em recente entrevista a professora e pesquisadora Cândida Soares, que atua no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), também afirmou que ainda vivemos em uma sociedade racista.
Ela deu exemplos de várias pessoas negras na nossa história que foram apagadas ou negligenciadas e afirmou que isto apaga a contribuição da população negra no país.
“Por exemplo, a gente sabe que Machado de Assis foi o fundador da Academia Brasileira de Letras. Durante muito tempo quando se lia sobre Machado de Assis, se via uma fotografia de um homem branco. Você ouve falar sobre Rebouças, que foi uma pessoa importante e você não sabe quem é Rebouças. Durante muito tempo estudavam-se os livros de Milton Santos sem saber que ele era negro. Então são muitas pessoas, muitas representações, muitos grupos, a luta dos grupos, a luta dos quilombolas por exemplo, sempre foram sinalizadas como rebeldia, como qualquer outra coisa, mas não enquanto um apontamento de um povo que construiu este país, que é importante e que tem direitos, e que estes direitos sejam garantidos”.
Ela também acredita que para que haja uma mudança em nossa sociedade, além de políticas públicas, a representatividade, a presença de figuras negras, ou de outras etnias não brancas, na mídia, retratadas de uma forma positiva, é muito importante para inspirar as novas gerações.
“Representatividade é importante para qualquer pessoa ter referência. Você só estabelece projetos de futuro sabendo que tem um horizonte para o qual você vai se projetar, e isto é importante também para as pessoas negras. É Importante que nossos filhos e as crianças de uma forma geral, as crianças negras, quilombolas, indígenas, tenham referências pelas quais elas possam também se projetar em uma perspectiva de futuro. Você só sonha quando você tem elementos que te ajudam a construir os seus sonhos e as possibilidades de realização. Historicamente nós vivemos durante muito tempo com todas as referências negras ocultas pela história. Estas questões acabam fazendo parecer como se a população negra não tivesse referências, quando na verdade o que existe é um ocultamento destas referências”, afirmou a professora.