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“Ela é anti-indígena”, critica primo de índia do Xingu levada por Bolsonaro à ONU
Da Redação - Lucas Bólico
Ysani Kalapalo é o nome da indígena de Mato Grosso alçada ao papel de liderança internacional pelo próprio presidente Jair Bolsonaro (PSL), durante discurso na abertura da 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), na última terça-feira (24). Seu nome foi apresentado em oposição ao de Raoni Metuktire, reconhecido mundialmente desde a década de 1980, mas causou repercussão negativa em diferentes povos.
“Ela é anti-indígena”, critica Arakuni Kalapalo, 36 anos, que afirma ser primo de Ysani. De acordo com ele, a escolhida de Bolsonaro para acabar com o “monopólio” de Raoni não tem voz de liderança e, ao abraçar a agenda do presidente, ela está atuando contra os interesses dos povos tradicionais. “Já existe o grupo de lideranças para representar o Xingu”, garante.
Guto, como Arakuni também é conhecido, explica que acompanha à distância a militância da prima. “Ela saiu do Xingu ela tinha 12 ou 16 anos, cresceu e estudou fora e ai vem com essa visão não indígena pra cá”. Ele conta que Ysani surgiu com um discurso de orgulho indígena antes de guinar para o bolsonarismo. “Ela começou a criticar [a construção da usina de] Belo Monte, a falar mal do PT e foi assim”, resume.
Existem registros disponíveis na internet do tempo em que Ysani elogiava publicamente o cacique Raoni e lideranças de esquerda, como o ex-deputado federal Jean Wyllys (Psol). Em discurso realizado na Câmara Federal em abril de 2013, ela se disse honrada de sentar na mesma mesa que Raoni, a quem chamou de exemplo de luta para os jovens. Naquele mesmo ano, durante o 10º Seminário LGBT no Congresso Nacional, Ysani comparou a luta por direitos dos homossexuais com a causa indígena. “Eu fiquei privilegiada por receber o convite do grande deputado Jean Wyllys. Acompanho a luta dele há muito tempo, desde a época do programa Big Brother”, disse.
Sua popularidade cresceu graças à carreira de youtuber, em que discute política, cultura e curiosidades das aldeias. Em 2018, poucos dias antes do segundo turno, entrevistou Jair Bolsonaro. Mais recentemente, diante da polêmica internacional das queimadas na Amazônia, gravou vídeo em que diz ser parte da tradição indígena atear fogo para limpar as roças em que produzem alimentos. Não é por conta do governo Bolsonaro”, garantiu. Pouco antes de embarcar junto com a comitiva brasileira à ONU, publicou críticas ao cacique Raoni, afirmando que ele não responde por todos os povos do Xingu.
Ysani divide atualmente o tempo entre São Paulo e o Xingu. Guto afirma que hoje ela só volta ao local de origem para gravar vídeos. "Representatividade ela não tem, ninguém dá moral para ela", critica. O primo afirma que a repercussão que a polêmica tem tomado o deixou desanimado. “Nosso povo está sendo mal falado”, reclama.
Apoiadores e detratores
Duas cartas abertas expõe a controvérsia sobre o papel de liderança de Ysani. Em discurso na ONU, Bolsonaro leu a missiva do Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil, em que o apoio a youtuber é apresentado como irrestrito. Este grupo congrega mais de 50 etnias espalhadas por todo o território nacional.
A resposta veio em carta de repúdio assinada por representantes dos 16 povos indígenas habitantes do Território Indígena do Xingu. O texto afirma que a escolha de Ysani demonstra desrespeito por parte do governo brasileiro com os povos e lideranças indígenas do Xingu e outras lideranças a nível nacional.
Confira abaixo a íntegra da carta do Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil lida por Bolsonaro em apoio a Ysani na ONU e a publicada pela Associação Terra Indígena Xingu contra a escolha do presidente.
Carta lida por Bolsonaro:
"O Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil, formado por diversas etnias, e com representantes por todas as unidades da federação, que habitam uma área mais de 30 milhões de hectares do território brasileiro, vem respeitosamente perante a sociedade brasileira endossar total e irrestrito apoio à indígena Ysani Kalapalo, aqui presente, do Parque Indígena do Xingu, do Mato Grosso, para que a mesma possa da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos, externar toda a realidade vivida pelos povos indígenas do Brasil, bem como trazer à tona o atual quadro de mentiras propagado pela mídia nacional e internacional, que insiste em fazer dos povos indígenas do Brasil uma reserva de mercado sem fim, atendendo aos interesses estrangeiros de países que ainda enxergam o Brasil como uma colônia sem regras e sem soberania.
O Brasil possui 14% de seu território nacional regularizado em terras indígenas, e muitas comunidades estão sedentas para que o desenvolvimento desta parte do Brasil finalmente ocorra sem amarras ideológicas ou burocráticas. Isso facilitará o alcance de uma maior qualidade de vida nas áreas de empreendedorismo, saúde e educação.
Uma nova política indigenista no Brasil é necessária. O tempo urge. Medidas arrojadas podem e devem ser incentivadas na busca pela autonomia econômica dos indígenas. Certamente, que se um conjunto de decisões vier neste sentido, poderemos vislumbrar um novo modelo para a questão indígena brasileira.
Um novo tempo para as comunidades indígenas é fundamental, a situação de extrema pobreza em que se encontram, sobrevivendo tão somente do Bolsa Família e de cestas básicas nunca representou dignidade e desenvolvimento.
O ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania.
A realidade ora posta impõe que o mundo na arena da Assembleia das Nações Unidas possa reconhecer nossos desejos e aspirações na voz da indígena Ysani Kalapalo que transmitirá o real quadro do meio ambiente e das comunidades indígenas brasileiras.
Portanto, Ysani Kalapalo goza da confiança e do prestígio das lideranças indígenas interessadas em desenvolvimento, empoderamento e protagonismo, estando apta para representar as etnias relacionadas’.
Carta contra a escolha de Ysani Kalapalo:
“CARTA DE REPÚDIO CONTRA REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NA DELEGAÇÃO DO GOVERNO BRASILEIRO NA ONU
Nós representantes maiores dos 16 povos indígenas habitantes do Território Indígena do Xingu (Aweti, Matipu, Mehinako, Kamaiurá, Kuikuro, Kisedje, Ikpeng, Yudjá, Kawaiweté, Kalapalo, Narovuto, Waurá, Yawalapiti, Trumai, Nafukuá e Tapayuna), viemos diante da sociedade brasileira repudiar a intenção do Governo Brasileiro de incluir a indígena Ysani Kalapalo na delegação oficial do Brasil que participará da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU que será realizada na cidade de Nova Iorque no próximo dia 23 de setembro de 2019. O governo brasileiro mais uma vez demonstra com essa atitude o desrespeito com os povos e lideranças indígenas renomados do Xingu e outras lideranças a nível nacional, desrespeitando a autonomia própria das organizações dos povos indígenas de decisão e indicação de seus representantes em eventos nacionais e internacionais.
O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil. Os 16 povos indígenas do Território Indígena do Xingu através de seus caciques reafirmam seu direito de autonomia de decisão através de seu próprio sistema de governança composto por todos os principais caciques dos povos xinguanos.
O governo brasileiro, não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida. Não aceitamos e nunca aceitaremos que o governo brasileiro indique por conta própria nossa representação indígena sem nos consultar através de nossas organizações e lideranças reconhecidos e respaldados por nós.
Atestam esta carta:
Tafukuma Kalapalo / Cacique do Povo Kalapalo
Aritana Yawalapiti / Cacique do Povo Yawalapiti
Afukaká Kuikuro / Cacique do Povo Kuikuro
Kotok Kamaiurá / Cacique do Povo Kamaiurá
Atakaho waurá / Cacique do povo Wauja
Tirefé Nafukuá / Cacique do Povo Nafukua
Arifira Matipu / Cacique do Povo Matipu
Awajatu Aweti / Cacique do Povo Aweti
Mayukuti Mehinako / Cacique do Povo Mehinako
Kowo Trumai / Cacique do Povo Trumai
Melobo Ikpeng / Cacique do Povo Ikpeng
Kuiussi Suya / Cacique do Povo Kisedje
Sadeá Yudjá / Cacique do Povo Yudja
Mairawe Kaiabi / Cacique do Povo Kawaiwete
Associação Terra Indígena Xingu – ATIX”