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Com remédio à base de cannabis, cuiabano que teve 'promessa' de viver dois anos já tem sete e diminuiu crises

Da Redação - Michael Esquer

“A maconha antes de ser uma droga que vicia é uma planta medicinal”. Assim explica a cuiabana Jéssica Curvo Pereira, 30 anos, mãe de Ricardo Curvo de Almeida, portador da síndrome rara Schinzel-Giedion. Quando nasceu, o menino recebeu a expectativa máxima de dois anos de vida. Hoje, a criança tem 7 anos, dos quais a maior parte viveu realizando o tratamento com um medicamento derivado da Cannabis.

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“[Antes] ele começava [a ter crises] e não parava, era uma atrás da outra. As convulsões, em quem tem com frequência, acontece em estado de sono. A criança está começando a ficar sonolenta, na hora de dormir, aí começava e não parava. Às vezes, quando pensava que ia parar aí começava de novo. Ele era muito pequeno, dava muita dó”, conta ao Olhar Direto a mãe, ao lembrar dos primeiros meses de vida do filho, quando ele ainda não fazia o tratamento com o canabidiol. 

O tratamento, porém, teve início após uma saga, que também é enfrentada por grande parte das famílias com filhos que possuem algum tipo de doença debilitante e que optam pelo tratamento com a Cannabis. Em 2014, quando recebeu o diagnóstico, Jéssica não conhecia a doença e, tampouco, a possibilidade de tratamento com o fármaco. 

O filho de Jéssica faz tratamento desde que nasceu com um medicamento importado da Califórnia (Foto: Rogério Florentino)

“A gente não tinha esse contato assim direto com deficiência, com epilepsia [um dos sintomas da síndrome de Ricardo], a gente não conhecia nada. Eu mesmo, as primeiras crises passaram batido por mim, eu nem sabia que era uma convulsão, porque assim, não era uma convulsão em si, parecia sustos que ele tinha”, relata. 

O diagnóstico, de fato, foi recebido quando o filho tinha dois meses de idade, quando as crises, que passavam despercebidas, identificadas como espasmos pela mãe, se intensificaram. Até então, o único sinal percebido pela família foram duas malformações diagnosticadas ainda na gravidez. Uma no rim e outra nas mãos. A chegada do diagnóstico assustou os familiares. 

"No começo foi bem difícil porque assim, visivelmente, o Ricardo, ninguém imaginava que ele tinha uma síndrome tão complicada. De cara, a primeira coisa que assustou a gente era que a expectativa de vida era de 2, 3 anos de vida. A gente tava criando um laço com um filho que a gente pensou que com 3 anos, no máximo, ele já iria embora. Foi um baque muito grande pra gente essa primeira parte”.

Cannabis como solução

#OLHO#No mesmo dia em que descobriu que o filho era portador de Schinzel-Giedion, Jéssica e o marido procuraram, na internet, por outras pessoas que também enfrentassem a mesma situação de Ricardo. Através de um blog, eles encontraram um pai que havia perdido o filho há pouco tempo por complicações da síndrome. 

Naquela época, o contato era feito por email e, por isso, a resposta não foi imediata. “Conseguimos o retorno dele dois ou três dias depois. Ele passou o contato de outra mãe, que foi a primeira mãe aqui do Brasil que teve filho com a síndrome do Ricardo, então a gente entrou em contato com ela”. 

Através desta mãe que Jéssica e o marido conheceram a possibilidade do tratamento e atenuação das crises do filho com a Cannabis. A baiana havia perdido o filho há menos de um mês na época. Enquanto aconselhou a família cuiabana sobre o tratamento, ela também lamentou que seu filho não tivesse tido a mesma oportunidade.

A Cannabis atenuou quase que por completo as crises de Ricardo. (Foto: Rogério Florentino)

“Na época ainda era muito mais complicado, então assim, quando ela conseguiu autorização da Anvisa o filho dela faleceu, ela não chegou nem a usar. Ela ainda falava ‘Jéssica eu tenho certeza que se meu filho tivesse tomado ele não tinha morrido’. Porque as convulsões vão piorando”. 

Em Cuiabá, Jéssica e o marido conseguiram naquele ano uma receita com uma pediatria especializada em neurologia, o que foi suficiente para que eles fizessem a solicitação à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda naquele mês. O processo burocrático - durante o qual muitas famílias desistem diante da  dificuldades e a exigência de exames que muitos não podem pagar - levou três meses para a família. 

“Era uma peregrinação. Você tinha que reunir todos os documentos, mandar por carta para a sede da Anvisa, por escrito, com foto, relato, exames comprobatórios da síndrome. A gente tirou sangue dele, daqui, mandou pra São Paulo, tinha que esperar o resultado do exame, uma burocracia enorme, até esperar o resultado. Tinha que reunir tudo isso pra mandar em um documento, por carta lá pra Anvisa”. 

A família, então, recorreu ao tratamento convencional com medicamentos anticonvulsivos comercializados em farmácias enquanto não recebia a liberação da Anvisa. Esta é a única alternativa que os que não possuem condições de arcar com o tratamento a base de Cannabis utilizam para atenuar as crises dos filhos que possuem doenças neurológicas. 

“A solução era os anticonvulsivos fármacos, que tem nas farmácias. Eles têm muito efeito colateral, nos outros órgãos, dependendo do medicamento, tem remédio que dá até cegueira, é muito forte”. 

Início do tratamento 

Aos cinco meses de idade, Ricardo recebeu a liberação da Anvisa para a utilização da Cannabis. Inicialmente, a família considerou realizar a solicitação dos medicamentos através das farmácias de alto custo do Sistema Único de Saúde (Sus). A burocracia, porém, mais uma vez, fez com que optassem pela judicialização do seu plano de saúde. 

“Preferimos correr atrás, particularmente, com advogado, por conta desse processo todo burocrático. Se você não tiver alguém que facilite a parte burocrática, você não consegue as coisas. Eu recebi informações de que o plano poderia fornecer, visto que o Ricardo tem homecare em casa e o plano já vinha fornecendo medicamentos que ele usava”, explica. 

“[Pedi então para] incluir outro medicamento pra mim, mas daí tive que entrar com advogado, porque é um medicamento importado, seria mais complicado, mas resolveria minha vida”.

Desde então, a família iniciou o tratamento do filho com a Cannabis medicinal, especificamente com um produto importado da Califórnia, nos Estados Unidos. As crises, que antes acompanhavam Ricardo dia e noite, hoje em dia se resumem a episódios isolados, que ocorrem geralmente quando a criança está doente. 

“Depois foi diminuindo gradativamente, a gente altera a dose, diminui. Às vezes, depende se ele estiver doente. Se não tiver nenhuma intercorrência ele nem tem crise”, explica Jéssica. “O canabidiol vem para atenuar as crises”. 

SUS será obrigado a fornecer o medicamento em MT 
 
Neste mês a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) aprovou, em caráter definitivo, o Projeto de Lei (PL) 489/2019, de autoria do deputado estadual Wilson Santos (PSDB). O PL deve obrigar o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer medicamentos à base de canabidiol aos pacientes atestados com condições médicas debilitantes. O PL ainda precisa ser sancionado pelo governador.
 
A esperança de Jéssica é que o projeto possa facilitar o acesso ao tratamento daqueles que encontram na substância alívio para as dores. Após ter atravessado a mesma experiência com o filho Ricardo, a cuiabana acredita que a regulamentação deve contribuir para o acesso facilitado aos insumos, o que ela não teve, inicialmente.

“Vem pra facilitar, principalmente a vida das famílias que têm crianças com deficiência. Não é fácil, a epilepsia agride muito o cérebro da criança. O cérebro que comanda o corpo todo, então, se o cérebro tá ali sofrendo danificações, isso agrava a saúde, o bem estar do paciente. Isso gera transtorno não só para o paciente, mas para a família inteira”. 

Assim mesmo, a mãe pontua que o PL tem que garantir também o processo de solicitação dos medicamentos por aqueles que deles necessitam para prosseguirem com seus tratamentos. Isto porque o tempo, para aqueles que padecem de crises e natureza neurológica, é precioso. 

Um exemplo: a mãe citada no início da reportagem que apresentou a possibilidade da Cannabis à Jéssica em 2014. Ela perdeu o filho logo após conseguir a autorização da Anvisa. “Se facilitar a vida das famílias é ótimo. Melhor ainda se a parte democrática fosse tão eficiente quanto“. 

Pedidos aumentam em meio ao tabu

De 2015 até este ano, os pedidos de autorização de importação de produtos à base de Cannabis por pessoas físicas e/ou associações de defesa de pacientes com condições médicas debilitantes aumentou em mais de 1.700%, conforme dados enviados ao Olhar Direto pela Anvisa. Em 2015, foram 850 pedidos contra os 22.028 deste ano, até outubro. 

Made with Flourish
O número expressivo revela o cenário onde cada vez mais pacientes, após esgotarem suas tentativas em alternativas convencionais e farmacológicas, optam pelo tratamento com a substância. O cenário de esperança na busca por tratamento, porém, se esbarra, às vezes, em um tabu: o vício pelas drogas.

“Na minha família eu tive um irmão que eu perdi para as drogas. Então, assim, se for pensar assim, eu seria a primeira a duvidar [do tratamento]. A maconha antes de ser uma droga que vicia é uma planta medicinal”, esclarece Jéssica. 

“A indústria farmacêutica coloca tantas substâncias nesses medicamentos que trazem efeitos colaterais e agride tanto o corpo humano. A Cannabis é natural e não tem tanto efeito colateral como [os medicamentos] que são produzidos por aí”. 

Hoje, após ter presenciado o aumento da expectativa de vida do filho que recebeu estimativa de apenas um biênio de sobrevivência, ela é taxativa ao defender os benefícios da Cannabis: “[Pode beneficiar] não só o Ricardo, que tem a epilepsia, como também outras doenças que afetam o sistema neurológico”.
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