Olhar Direto

Segunda-feira, 29 de abril de 2024

Opinião

Sistema de freios e contrapesos também requerem a eterna vigilância

Muito embora as tensões entre os poderes da República tenham se manifestado de forma mais acentuada nos últimos anos, não se trata, entretanto, de um fenômeno recente tampouco sazonal. As fricções entre Legislativo, Executivo e Judiciário são, inclusive, uma constante da história das democracias e podem funcionar como uma espécie de força motriz a conduzir transformações: quando respeitados os limites da civilidade, temos luz; do contrário, nos sobra a barbárie.

Como apenas o respeito à civilidade nos interessa, o reconhecimento destas tensões como algo natural do processo democrático não afasta, contudo, a responsabilidade de todos os atores e representantes de cada poder constituído de respeitar-se e submeter-se mutuamente à autoridade consagrada no sistema de freios e contrapesos, que visa equilibrar e limitar o poder das diferentes esferas do governo para evitar abusos de autoridade e garantir o Estado de Direito

O Supremo Tribunal Federal (STF) desempenha um papel fundamental neste sistema, também conhecido como "checks and balances".  Uma das funções primordiais do STF é a de guarda da Constituição, submetendo ao escrutínio da Lei Maior os atos normativos e ações de governo. Em outras palavras. Isso significa que cabe ao STF declarar (ou não) uma lei inconstitucional, cotejando o seu conteúdo aos princípios estabelecidos na Constituição.

Justamente por isso, o cumprimento das decisões do STF é fundamental para a preservação do Estado de Direito e do sistema democrático no Brasil. A independência do Poder Judiciário e o respeito às suas decisões são princípios-chave para a estabilidade institucional e o funcionamento da democracia. De forma clara, a Constituição Federal não deixou margem para irresignação contra as decisões da Suprema Corte. A saber:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.


 
Como se não bastasse, a legislação ordinária achou por bem reiterar o comando constitucional na Lei 9.868/1999, que diz:

Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.

Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

Em outras palavras: quando o Supremo se pronuncia sobre a constitucionalidade (ou não) de uma lei, todos estão submetidos a esta decisão no âmbito federal, estadual e municipal — e a ela devem dar cumprimento. Tanto isso é verdade que a Lei do Impeachment considera, em seu artigo 12, crime contra o cumprimento das decisões judiciárias as seguintes hipóteses:

1 - impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;

2 - Recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo;

3 - deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral;

4 - Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.

É sob esta perspectiva que merece atenção a mensagem do governador Mauro Mendes à Assembleia Legislativa do Mato Grosso ao justificar o veto a projeto de lei aprovado por aquela Casa que “estabelece a obrigatoriedade do sistema retornável intercambiável para garrafões destinados ao envase de água mineral natural e água potável de mesa". Entendeu o governador que tal norma seria inconstitucional por usurpar competência da União para legislar sobre direito civil, comercial e recursos minerais e afrontar os princípios da Proteção de Marcas e da livre concorrência, além de violar o Código de Defesa do Consumidor.

Com o devido respeito às razões apresentadas pelo governador, há um equívoco que reclama reparação. No parecer em que se esgrimiu as razões para o veto, à Procuradoria do Estado de Mato Grosso, sabiamente, teve o cuidado de alertar o governador sobre a existência de decisões do STF pela constitucionalidade de leis estaduais de conteúdo similar. Em síntese, tais decisões não só reafirmam a competência das unidades da federação para editar leis sobre o assunto em questão, como também, para afastarem as alegações de potenciais violações aos princípios constitucionais mencionados pelo governador. Na ADI 2.359/ES, o Supremo assim decidiu:

Não procede a alegação de violação à proteção às marcas e criações industriais. A lei impugnada não dispõe a respeito dessa matéria. 2. O texto normativo questionado contém diretrizes relativamente ao consumo de produtos acondicionados em recipientes reutilizáveis --- matéria em relação à qual o Estado-membro detém competência legislativa [artigo 24, inciso V, da Constituição do Brasil] [...] A  lei hostilizada limita-se a promover a defesa do consumidor, dando concreção ao disposto no artigo 170, V, da Constituição do Brasil. O texto normativo estadual dispõe sobre matéria da competência concorrente entre a União, os Estados-membros e o Distrito Federal.

E reafirmou seu entendimento na ADI 2818/RJ:

2. As normas em questão não disciplinam matéria atinente ao direito de marcas e patentes ou à propriedade intelectual matéria disciplinada pela Lei Federal nº 9.279 -, limitando-se a normatizar acerca da proteção dos consumidores no tocante ao uso de recipientes, vasilhames ou embalagens reutilizáveis, sem adentrar na normatização acerca da questão da propriedade de marcas e patentes. 3. Ao tempo em que dispõe sobre a competência legislativa concorrente da União e dos Estados-membros, prevê o art. 24 da Carta de 1988, em seus parágrafos, duas situações em que compete ao estado-membro legislar: (a) quando a união não o faz e, assim, o ente federado, ao regulamentar uma das matérias do art. 24, não encontra limites na norma federal geral que é o caso ora em análise; e (b) quando a união edita norma geral sobre o tema, a ser observada em todo território nacional, cabendo ao estado a respectiva suplementação, a fim de adequar as prescrições às suas particularidades locais.

O veto, baseado na alegação de inconstitucionalidade e violação de princípios constitucionais, carece de fundamento à luz das decisões do próprio STF que reiteradamente afirmam a competência das unidades da federação para legislar sobre a matéria em questão. A recusa em acatar essas decisões expõe a autoridade prolatora ao risco de incorrer em crime de responsabilidade, de acordo com a Lei do Impeachment, especialmente no que diz respeito a “impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário”. E não se trata aqui, nos estreitos limites deste artigo, de estimular qualquer apreensão entre os atores políticos. Mas apenas ilustrar que o funcionamento do sistema de freios e contrapesos desenhado pela Constituição requer, assim como o exercício da liberdade, a eterna vigilância.

Almino Afonso e Gustavo Lisboa são advogados e sócios do escritório Almino Afonso & Lisboa s/s.
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