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Sábado, 25 de maio de 2024

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Contos de "Em Outros Quartos, Outras Surpresas" criam retrato crítico do Paquistão

As oito narrativas que integram "Em Outros Quartos, Outras Surpresas" (Companhia das Letras, 2010), do estreante escritor de origem paquistanesa Daniyal Mueenuddin, formam um mosaico sobre a realidade de seu país.


Amarradas pela figura de K. K. Harouni, um rico proprietário de terra, as histórias percorrem as relações existentes no universo rural e deflagram o abismo social do país.

Sem abrir mão da individualidade e da humanidade de seus personagens, o escritor demonstra que a extrema pobreza funciona como chave para a existência de uma organização social onde alguns membros são tratados como meras marionetes.

Revelação na literatura, o volume de Mueenuddin foi finalista dos prêmios Pulitzer 2010 e do National Book Award 2009, dois dos mais significativos reconhecimentos literários mundiais.

Leia trecho do conto "Nawabdin, o eletricista", de "Em Outros Quartos, Outras Surpresas".

*
Ele prosperou graças a uma habilidade peculiar, uma técnica de tapear a empresa de energia elétrica que consistia em diminuir a velocidade das rotações dos medidores de luz, uma manobra tão engenhosa e eficiente que seus clientes podiam especificar a economia mensal desejada com uma precisão da ordem de cem rupias. Naquele deserto paquistanês, atrás de Multan, onde as bombas dos poços artesianos ficavam ligadas dia e noite, a descoberta de Nawab eclipsava a pedra filosofal. Alguns achavam que ele usava ímãs, outros diziam que ele usava óleo pesado, ou lascas de porcelana, ou uma substância extraída de colmeias. Céticos diziam que ele tinha um arranjo com os funcionários que faziam a leitura dos medidores. Fosse como fosse, a manobra lhe garantia trabalho tanto dentro quanto fora da fazenda de seu patrão, K. K. Harouni.

A fazenda estendia se ao longo de uma estrada estreita e esburacada que ligava aquela área rural com cidades consumidoras e fora construída nos anos 1970, quando Harouni ainda tinha influência na burocracia de Lahore. Longos trechos de deserto amarelado ou branco feito uma salina espalhavam se entre campos de cana de açúcar e de algodão, pomares de mangueiras e plantações de forragem e trigo, irrigados diariamente com água dos poços artesianos cujas bombas Nawabdin, o eletricista, fazia funcionar. Iniciando as rondas em suas manhãs itinerantes, convocado a consertar uma bomba enguiçada, Nawab e sua bicicleta sacolejavam pela estrada afora, antenas e flores de plástico balançando. Suas ferramentas, das quais a mais notável era um martelo de bola que pesava mais de um quilo, retiniam dentro de uma bolsa de couro sebenta que pendia do guidom. Os colonos e o capataz responsável esperavam na sombra fresca das figueiras de bengala, plantadas havia anos para sombrear cada um dos poços artesianos. "Chá não, chá não", dizia Nawab, recusando com um aceno de mão a xícara fumegante.

Martelo balançando como o machado de um selvagem, Nawab entrou no quartinho sujo de óleo que abrigava a bomba e o motor elétrico. Silêncio. Nawab se acocorou. Os homens se amontoaram no vão da porta, até que ele gritou que precisava de luz. Aproximou se do objeto ofensor com cautela, mas crescente exasperação, deu uma volta em torno dele, aplicou lhe alguns empurrões, começou a tomar liberdades com ele, acomodou se com ele, tomou chá a seu lado e, por fim, começou a desmontá lo. Com sua chave de fenda grossa e comprida, forte o bastante para alavancar uma lajota do chão, arrancou as placas protetoras que escondiam as intimidades da máquina. Um parafuso pulou e voou para as sombras. Nawab pegou o martelo de bola e desferiu um golpe habilidoso. A intervenção malogrou. Refletindo, Nawab ordenou a um dos colonos que arranjasse um pedaço de couro bem grosso e pegasse um pouco da seiva pegajosa de uma mangueira ali perto. Assim foi, a manhã inteira e pela tarde adentro, Nawab tentando uma coisa e depois outra, esquentando e esfriando canos, unindo e desunindo fios, conectando e desconectando chaves e fusíveis. E no entanto, de alguma forma, confirmando o gênio de Nawab para a improvisação tosca, as bombas continuavam a funcionar.

Infelizmente - ou talvez felizmente - Nawab havia se casado cedo com uma mulher amorosa, a quem adorava, mas de extraordinária fertilidade; e ela pôs se então a lhe dar filhos que nasciam com pouco mais de nove meses de intervalo um do outro, quando não menos. Filhos não, filhas todas elas, uma atrás da outra, até que finalmente veio o esperado filho, deixando Nawab com uma dúzia completa de meninas, com idades que iam de meses até onze anos, e o único menino. Se ele fosse governador da província do Punjab, o dote das filhas o reduziria à miséria. Para um eletricista e mecânico, por mais leves que fossem seus dedos, parecia inconcebível casá las todas. Nenhum agiota em seu juízo perfeito emprestaria, a que taxa de juros fosse, uma quantia suficiente para comprar tudo o que era necessário: para cada filha, camas, uma penteadeira, baús, ventiladores, louças, seis mudas de roupa para o noivo, seis para a noiva, talvez uma televisão etc. etc. etc.

Outro homem poderia ter entregado os pontos, mas não Nawabdin. As filhas atuaram como um aguilhão a estimular seu gênio, e todas as manhãs ele olhava no espelho com satisfação para o rosto de um guerreiro prestes a ir para a batalha. Claro que Nawab sabia que precisava multiplicar suas fontes de renda - o salário que recebia de K. K. Harouni para cuidar da manutenção dos poços artesianos não daria nem para a saída. Então, Nawab montou um pequeno moinho de trigo, movido por um motor elétrico condenado - condenado por ele. Tentou a sorte com a criação de peixes num pequeno lago que ficava na beira de um dos campos do patrão. Comprava rádios escangalhados, consertava os e revendia os. Não hesitava nem quando lhe pediam para consertar relógios, muito embora se saísse espetacularmente mal nessa atividade e, na verdade, ela lhe rendesse mais queixas do que glórias, pois nenhum relógio que ele desmontava voltava a funcionar direito.

K. K. Harouni raramente ia a suas fazendas, vivendo a maior parte do tempo em Lahore. Sempre que o velho visitava suas terras, no entanto, Nawab se plantava dia e noite diante da porta que dava passagem do alojamento dos empregados para o arvoredo murado de antigas figueiras de bengala onde ficava a velha casa de fazenda. Grisalho, com seus curiosos óculos de aviador tortos e enfarruscados, Nawab cuidava da maquinaria da casa, dos ares condicionados, dos aquecedores de água, das geladeiras e bombas-d'água, como um engenheiro cuidando das caldeiras de um barco a vapor que está indo a pique numa tempestade no Atlântico. Por meio de esforços sobre humanos, Nawab quase conseguia manter K. K. Harouni cercado do mesmo conforto mecânico - mantê lo fresco, banhado, iluminado e alimentado - de que o proprietário de terras desfrutava em Lahore.

Harouni obviamente familiarizou se com aquele homem ubíquo, que não só o acompanhava em suas rondas de inspeção como podia ser visto dia e noite trepado em cima da cama do patrão trocando a fiação do lustre ou no banheiro remexendo no aquecedor. Por fim, num final de tarde à hora do chá, avaliando o momento psicológico, Nawab perguntou se poderia dar uma palavrinha com o patrão. O proprietário, que estava lixando as unhas, satisfeito, diante de uma fogueira crepitante de lenha de jacarandá, disse a ele que falasse.

"Patrão, como o senhor sabe, as suas terras vão daqui até o rio Indo. Nessas terras, há nada menos que dezessete poços artesianos e, para cuidar desses dezessete poços, tão somente um homem, eu, seu criado. Servindo ao senhor, ganhei estes cabelos brancos", ele então abaixou a cabeça para mostrar os cabelos brancos, "e agora não tenho mais condições de cumprir minhas tarefas como deveria. Basta, senhor, basta. Eu rogo ao senhor que perdoe minha fraqueza. Antes uma casa escura e uma fome digna nas entranhas do que a vergonha à luz do dia. Eu peço, imploro ao senhor que me dispense."

O velho, bastante acostumado a discursos desse tipo, embora normalmente eles não fossem tão floreados, continuou a lixar as unhas e esperou a brisa passar.

"Qual é o problema, Nawabdin?"

"Problema, senhor? Ah, que problema poderia ter alguém que serve ao senhor? A minha vida inteira ganhei meu pão trabalhando para o senhor. Mas andando de bicicleta agora, senhor, com as minhas pernas velhas e com os muitos machucados que sofri quando máquinas pesadas caíram em cima de mim... eu não consigo mais sair pedalando por aí como um noivo, de fazenda em fazenda, como conseguia quando tive a sorte de me tornar seu empregado. Por isso eu rogo ao senhor que me dispense."

"E qual é a solução?", perguntou Harouni, percebendo que eles haviam chegado ao momento decisivo. Ele não estava se importando muito se Nawab ia ou não embora, salvo pelo fato de que isso afetava o seu conforto - uma questão de grande interesse para ele.

"Bom, senhor, se eu tivesse uma motocicleta, daria para ir levando, pelo menos até eu conseguir treinar algum homem mais moço para o serviço."

As colheitas naquele ano tinham sido boas, Harouni se sentia expansivo na frente do fogo e então, para grande desgosto dos capatazes, Nawab recebeu uma motocicleta nova em folha, uma Honda 70. E ainda conseguiu extrair do patrão uma ajuda de custo para a gasolina.

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"Em Outros Quartos, Outras Surpresas"
Autores: Daniyal Mueenuddin
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 296
Quanto: R$ 41,90 (preço especial, por tempo limitado)
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha
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