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Quinta-feira, 16 de maio de 2024

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Para fora da invisibilidade

Em ziguezague pela avenida, mendigo desafia trânsito e desesperança em sua cadeira de rodas

Foto: Rogério Florentino Pereira/Olhar Direto

Morador de rua há 10 anos, Gildo pede em meio ao trânsito na Avenida Getúlio Vargas.

Morador de rua há 10 anos, Gildo pede em meio ao trânsito na Avenida Getúlio Vargas.

Na altura das praças Santos Dumont ou da 8 de Abril, no caminho por onde diariamente sobem e descem milhares, olhares anestesiados pela rotina focam em um ziguezague incômodo. Sujo, doente, faminto e nem sempre sóbrio, o responsável pela ruptura da ordem se arrisca em meio aos carros para, em sua cadeira de rodas, arrecadar os recursos que lhe garantem sobrevivência pela região nobre da capital. A estética desagradável do mendigo choca mais do que sensibiliza. Talvez porque a presença inconveniente de Gildo traga a tona sensações imprevistas para o trajeto.


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Na contramão da vida, ele pode ser encontrado também pelas proximidades da Avenida Dom Bosco. No entanto, é na 8 de Abril, onde o coreto e uma torneira com mangueira viabilizam abrigo e banhos esporádicos, que passa a maior parte do tempo. Também ali mantém seu círculo de amizades, forjado entre outros moradores de rua, pela partilha e troca de favores.

Lições aprendidas nos últimos 10, de seus 45 anos, período no qual vive fora de casa. 
“Cada um ajuda do jeito que dá, é uns pelos outros. Tem muita gente boa aqui. Se a gente fosse ruim como dizem, como a televisão mostra, não existiria mais nada. Se fossemos desse jeito que acham, já teriam matado todos, não existiria nenhum.”

Pelos estabelecimentos da região compra Coca-Cola e cigarro. Acostumados a vê-lo, os comerciantes e trabalhadores da localidade se valem da distância para remeter a ele. Lembram que o homem atrapalha o trânsito, que pode causar um acidente, que tem família e que é usuário de drogas, mas não sabem informar seu nome.

“Ele tem filha, mora aí porque quer. De vez em quando a prefeitura vem e leva, aí ele aparece com uma cadeira nova. É bem perigoso porque ele não respeita o sinal e sai pelo meio da rua pedindo. Uma hora, algum distraído, mesmo estando certo, pode atropelar, daí acaba complicando a vida por causa disso. Às vezes tem algum que para e tira ele do meio da rua, porque é arriscado pra ele mesmo’, afirma uma das proprietárias, sem se identificar. 
 
Sobre as drogas, se limita a confirmar com um aceno de cabeça. Reotma o assunto em seguida, quando conta já ter sido preso por mais de uma vez, e lembra a conduta dos policiais com a população em situação de rua.  “Acho que isso é uma alegria que eles sentem em humilhar e bater, porque eles gostam de levar a gente. E não é só pobre que usa. Aqui você vê cada carrão passando com gente fumando maconha, cheirando cocaína. Arroz, feijão e droga foi feito pra usar mesmo.”

Não há estimativa de quantas pessoas vivam nas ruas da Capital, mas o número de atendimentos realizados pelo Serviço de Atendimento Social Especial passou dos 2000 apenas no primeiro trimestre deste ano. As causas variam entre as histórias de cada um, mas o esforço limitado de Gildo ao explicar o porquê de sua condição confirma o que se presume sobre a mendicância. “O que leva pra rua é a pobreza mesmo. Se eu pudesse ter um lugar do meu jeito, claro que trocaria. Mas a gente sempre pensa que vai melhorar e nunca melhora, só piora”, resume.

A falta de um lar acompanha a opção pela liberdade, já que o convívio com as três filhas, no bairro Ribeirão do Lipa, foi substituído por raras visitas dele ou delas, que já tentaram sem sucesso tirá-lo desta situação e levá-lo para casa. Desde que abriu mão do convívio familiar, se acomoda pelas calçadas e praças, onde por vezes, cai entorpecido pela droga ou bebida.

O desconforto e a fragilidade dos abrigos, porém, não parecem incomodar o pedinte, já que, em sua avaliação, a condição de rua em si, não é ruim, mas sim a maneira que se vive nela. “Às vezes você quer fazer as coisas de um jeito e a pessoa quer de outro. Cada um tem sua maneira, por isso resolvi sair. Dormir no chão é o de menos. Não mata ninguém. Na verdade a gente sabe que pedir não é certo, pede porque não tem outro jeito.”

Decisão também posta à prova pelo Poder Público, que, segundo ele, quer obrigá-lo a ir para um albergue por meio da atuação Serviço Especializado em Abordagem Social. “Não querem nem saber se [a gente] quer ou não, já chegam pegando a gente e levando pro tal do albergue. Se não quiser, vai na marra mesmo. Pega que nem bicho, mas tem uns mais espertos que correm.” Questionado sobre a qualidade de vida no abrigo e na rua, reforça sua escolha: “obrigado nada é bom.”

A Prefeitura afirma que há dois programas voltados a esta parcela da população e que em nenhum destes casos há o recolhimento compulsório das pessoas. Por este motivo a administração também não possui mecanismos para impedir que eles abandonem as unidades terapêuticas ou de abrigamento e voltem às ruas. 

De acordo com a gestão, eles recebem atendimento psicossocial e de saúde, refeições, providências referentes à obtenção de documentos pessoais, reinserção familiar, encaminhamento para programas e projetos sociais, além de outros serviços. Já em casos de usuários de drogas, são encaminhados para uma das nove unidades terapêuticas, mantidas em parceira da Prefeitura de Cuiabá com instituições religiosas, ou para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para passar por tratamento de reabilitação.

Para uma causa ignorada, as medidas são provisórias e contam com pouca simpatia dos cidadãos acostumados ao clichê meritocrata. Neste cenário que segrega, culpa e descrimina aqueles que não se enquadram, Gildo se destaca. Sua presença, indesejável para a maioria, suscita involuntariamente aquilo que seus observadores se empenham em ignorar. Gildo é o que cada um poderia ser, se despido de sonhos, roupas, perfume, ou oportunidade.
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