Olhar Direto

Segunda-feira, 29 de abril de 2024

Opinião

Hamburguer de carne humana

Bem, primeiramente confesso que não sou vegano ou vegetariano. Ao contrário, seguindo a tradição sulista da família, aprecio um bom churrasco ou um arroz de carreteiro. Da mesma forma, não recuso um bom hamburguer.

Na realidade, até gostaria de ser, pelo menos, semivegetariano, evitando o consumo de carnes vermelhas. Pelo que já li, isso teria um efeito positivo, tanto para a saúde física como para a espiritual. Mas a realidade é que ainda não consigo resistir a um bom bife, um picadinho com batatas, um quibe, uma empada ou um pastel.

Recentemente, fui atraído para conhecer uma famosa cadeia de restaurantes que apregoava oferecer “o melhor hamburguer do mundo”. Antes da pandemia, estive duas vezes numa de suas filiais em um shopping-center de nossa capital. Por ironia, na primeira vez, pedi um prato de frango com salada. Na outra, decidi provar o tal hamburguer. Saboroso, mas nada excepcional e relativamente caro. Já degustei outros melhores em food-trucks e em redes concorrentes.

Recordei essa experiência ao assistir semanas atrás um vídeo profusamente divulgado na internet e nas redes sociais no qual o proprietário dessa cadeia de restaurantes abandona sua expertise culinária e incorpora o papel de formulador de políticas públicas em situações de calamidade pública e emergência sanitária.

Desnecessário dizer que assistir a sua fala provoca indigestão e cólicas. O referido mestre-cuca exagerou nos temperos, mostrou ser cru em economia e gelado em solidariedade humana. Confundiu ingredientes e estatísticas e passou muito do ponto do bom-senso. O produto resultante é um discurso intragável, hipócrita e cruel. Nele, expõe as vísceras de uma mentalidade gananciosa e insensível ao sofrimento de milhares de famílias de brasileiros vítimas fatais da covid-19.

Isoladamente, o vídeo e o canastrão não têm qualquer relevância e não mereceriam comentários. Sucede, porém, que a mensagem que transmitiu não é exclusiva de um único indivíduo. Na realidade, é representativa de uma parcela da elite empresarial brasileira que não mediu esforços para boicotar as medidas de isolamento social e as recomendações das autoridades médicas e científicas. Infelizmente, contaram com poderosos aliados em altos escalões, que não se constrangeram em multiplicar maus exemplos de desobediência cívica, até mesmo na recusa ao uso de máscaras de proteção individual. Em sincronia com o vírus, robôs em redes sociais disseminaram fake news de toda a espécie, confundindo a população, subestimando a gravidade da doença, fantasiando soluções milagrosas e estimulando atitudes tresloucadas de agressões a enfermeiros em Brasília, buzinaços em frente a hospitais em São Paulo, profanação de cruzes em homenagem às vítimas no Rio de Janeiro e até mesmo a invasão de UTIs.

Numa sociedade marcada por profundas desigualdades, o vídeo traduz a indiferença de muitos dos graúdos com a vida dos mais frágeis. É a ideologia do “E daí? Vai morrer muita gente mesmo.”

No futuro, quando se estudar com cuidado a história da inconcebível sucessão e combinação de equívocos deliberados, omissões calculadas e irresponsabilidades criminosas que conduziram o nosso país à tragédia de um dos piores resultados mundiais no enfrentamento á pandemia de 2020, certamente esse vídeo do hamburguerista será selecionado como um dos “piores momentos” em várias categorias.

Por enquanto, não deixarei de comer os meus sanduíches carnívoros. Mas não me convidem para ir ao estabelecimento desse senhor. Depois desse vídeo e de tudo o que ele representou, para mim os seus hamburgueres têm sabor de carne humana.


 

Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.

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