Opinião
“Fake news”, “pós-verdade” e o paradoxo da desinformação
Autor: Alexandre Guimarães
09 Abr 2018 - 08:00
Outubro de 2016: o serralheiro Carlos Luiz Batista passou a receber ameaças depois que uma foto sua viralizou no WhatsApp com a informação de que ele seria estuprador e sequestrador de crianças. Nos boatos, o nome de Carlos não é citado. Na mensagem, ele é identifcado como morador de Mesquita, na Baixada Fluminense, e dono de um carro Fox preto. Entretanto, o serralheiro mora em Cosmos, na Zona Oeste do Rio, e dirige um Corsa verde.
Maio de 2017: WhatsApp diz que aplicativo passará a ser pago? Após uma oscilação na rede (no dia 4), um texto reciclou um boato antigo sobre a cobrança. O WhatsApp reitera que não cobra e não manda mensagens diretas a usuários.
Novembro de 2017: quem não fizer a biometria terá que pagar multa de R$ 150? O boato circulou pelo WhatsApp e tomou conta da internet (eu recebi e provavelmente você também), gerando grandes filas em frente aos postos de cadastramento biométrico. A notícia é falsa. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lembra que, nas cidades onde o cadastramento biométrico é obrigatório, o eleitor que não cumprir a convocação terá o título cancelado e não poderá obter a certidão de quitação eleitoral. A legislação também prevê o cancelamento do título de eleitor se o cidadão ficar três eleições consecutivas sem votar ou justificar.
Março de 2018: a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi morta a tiros dentro de um carro no Rio de Janeiro. Anderson Pedro Gomes, motorista do veículo, também foi baleado e morreu. A outra passageira, assessora de Marielle, foi apenas atingida por estilhaços. A principal linha de investigação da Delegacia de Homicídios é execução.
Logo após o crime, pipocaram vários boatos pela internet: “Marielle engravidou aos 16, foi casada com Marcinho VP, foi eleita pelo Comando Vermelho e ignorava as mortes de policiais”. Todas as informações são falsas! Marielle teve a única filha, Luyara Santos, aos 19, e o pai dela é Glauco dos Santos. Não faz sentido também a afirmação de que Marielle foi eleita pelo CV. Ela recebeu 40% dos votos na Zona Sul e na Barra da Tijuca – foi a quinta mais votada em toda a cidade. Aliás, ao contrário do que afirma a mensagem, a vereadora também atuava em favor de famílias de policiais vítimas da violência, como revelou recentemente a mãe de um oficial morto.
Boatos como os citados acima fazem parte da história da humanidade desde os seus primórdios. Mesmo antes da invenção da escrita, homens e mulheres transmitiam e recebiam informações na base do “ouvi dizer”. O surgimento da escrita e, posteriormente, da imprensa, não estancou a troca informal de novidades entre as pessoas. Pelo contrário, a mídia eletrônica, em particular as redes sociais, passou a fornecer matéria-prima para rumores, além de facilitar a propagação de notícias fantasiosas.
Atualmente, esses boatos são conhecidos como “fake news” – histórias falsas que parecem ser notícias, espalhadas na internet ou por meio de outra mídia, normalmente criadas para influenciar visões políticas ou como piada, segundo o dicionário de Cambridge. As “fake news” estão presentes em todos os países e indivíduos de qualquer idade e estrato social ajudam a disseminá-las. Se um boato se espalha, é porque encontra eco nos ouvintes, ou seja, para eles, a história faz sentido naquele instante – não parece mentira. Aliás, a fonte da suposta notícia influencia diretamente na decisão do receptor de passar ou não a mensagem adiante – se o transmissor tem credibilidade para você, a história lhe parece crível e provavelmente você vai compartilhá-la.
Essa questão é tão importante que o Ministério da Defesa e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em conjunto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), preparam uma força-tarefa para combater as notícias falsas nas eleições deste ano. E não são os únicos preocupados com o tema. “Há uma grande eleição no Brasil. Pode apostar que estamos comprometidos em fazer tudo o que pudermos para garantir a integridade dessas eleições no Facebook”, afirmou Mark Zuckerberg, fundador e CEO da empresa, em entrevista recente à rede de tevê americana CNN.
Zuckerberg tem motivos para se preocupar: o Facebook sofreu um forte abalo com a revelação de que informações de mais de 50 milhões de pessoas (número atualizado para 87 milhões no último dia 4) foram utilizadas sem o consentimento delas pela empresa britânica Cambridge Analytica para fazer propaganda política. A empresa teve acesso a esse gigantesco volume de dados ao lançar um aplicativo de teste psicológico na rede social – quem participou do teste entregou inadvertidamente não apenas suas informações, mas também dados de todos os amigos do seu perfil. A companhia obteve as informações em 2014 e as usou para desenvolver um aplicativo destinado a prever as decisões dos eleitores e também a influenciá-las.
Não por acaso, a Cambrige Analytica foi contratada pela vitoriosa campanha presidencial de Donald Trump, em 2016, e também pelo grupo que promovia o Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), aprovado em plebiscito no mesmo ano. O fundador do Facebook já reconheceu que a empresa errou ao permitir que os dados dos usuários fossem compartilhados e anunciou que a rede social vai aprimorar suas ferramentas de segurança e auditar os aplicativos parceiros.
Caro leitor, preste atenção! A disseminação de boatos pode ter consequências muito graves, inclusive a morte de pessoas inocentes. Não acredita? No dia 5 de maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi espancada até a morte por moradores de Guarujá, no litoral de São Paulo. O motivo? Fabiane foi acusada de praticar magia negra com crianças por causa de uma notícia falsa compartilhada pelas redes sociais. O boato gerado em uma página do Facebook e um retrato falado da dona de casa se espalharam pela internet. Cinco pessoas foram condenadas pelo crime – as penas variam de 26 a 40 anos de prisão. Ironicamente, os vídeos postados nas mídias sociais por quem filmou o linchamento ajudaram a identificar os réus.
O caso parou por aí? Não! Em 2017, cerca de três anos após a morte de Fabiane, uma das fotos de seu linchamento foi compartilhada ao lado da imagem de uma criança com a manchete: “Mulher é linchada até a morte após violentar neném com soda cáustica”. A notícia é real – o caso ocorreu em Anadia, agreste de Alagoas, em março. Mas a foto que a estampa é falsa. Na verdade, a vítima do espancamento foi Ana Luiza Caetano da Silva, atacada momentos depois de jogar ácido num bebê e na sua mãe – segundo relato à polícia, Ana Luiza tomava remédios controlados e foi morta pela mãe do bebê, a madrasta dela e duas amigas. Repare que, mesmo morta, Fabiane continuou sendo vítima dos boatos. Ela pode dar nome a uma nova lei, em tramitação no Congresso Nacional, que visa punir quem incitar crimes pela internet.
A despeito de todos os problemas já citados e tantos outros, como a criação de páginas de cunho político que propagam “fake news” em mídias sociais (principalmente no Facebook), sites hospedados em países distantes com legislação branda ou inexistente sobre a disseminação de mentiras, como a Macedônia (para entender melhor, veja o ótimo documentário “Fake News: Baseado em fatos reais”, da GloboNews), e jovens brasileiros pagos para administrar contas falsas e publicar opiniões forjadas em redes sociais durante as eleições de 2014 (saiba mais na excelente matéria “Exclusivo: investigação revela exército de perfis falsos para influenciar eleições no Brasil”, da BBC Brasil), temos que fazer um mea-culpa. Somos todos culpados! Ou não? Pare e pense: você já compartilhou notícias no WhatsApp, Facebook ou em qualquer outra plataforma online sem checar a veracidade da informação? Pois é! Eu também!
Mas por que será que compartilhamos notícias falsas com tanta facilidade? Segundo pesquisa do MIT (Massachusetts Institute of Technology), publicada em março na revista Science, as “fake news” se proliferam pelas redes sociais de forma mais rápida, mais fácil e mais ampla do que as notícias reais. E a engrenagem da mentira não é composta só por robôs, como muitos pensam. São as próprias pessoas que, levadas por sentimentos de surpresa, repulsa e medo, compartilham os boatos de forma visceral. Esse é o maior estudo já feito sobre a disseminação de informações falsas na internet – os pesquisadores analisaram 126 mil notícias que circularam no Twitter entre 2006 e 2007.
Elas foram tuitadas por cerca de 3 milhões de pessoas e retuitadas mais de 4,5 milhões de vezes. Na pesquisa, as notícias foram designadas como verdadeiras ou falsas com base na verificação feita por seis organizações independentes de “fact-checking” – checagem de fatos, um dos remédios contra as “fake news”. Os estudiosos buscaram então apontar a probabilidade de uma notícia publicada na internet criar uma “avalanche” de republicações: a análise mostrou que a chance de uma notícia falsa ser compartilhada é 70% maior do que a de notícias verdadeiras.
Para os pesquisadores do MIT, as notícias falsas são mais inusitadas do que as verdadeiras e por isso seriam mais propagadas. Contudo, existe uma expressão cada vez mais utilizada que também pode explicar esse fenômeno: a “pós-verdade”. De acordo com o dicionário de Oxford, que escolheu “post-truth” (em inglês) como a palavra internacional do ano de 2016, o termo descreve circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que emoções e crenças pessoais. A palavra ainda não consta nos dicionários brasileiros.
Porém, em resposta a um e-mail sobre esse assunto, a Editora Melhoramentos informou que o verbete será incluído na próxima atualização do Michaelis Online. Portanto, em breve não será mais necessário utilizar aspas para falar sobre a “pós-verdade” – lembrando que a língua é dinâmica e deve acompanhar as mudanças na comunicação.
Em outras palavras, nós acreditamos naquilo que condiz com nossas convicções. Dessa forma, baseados na emoção (e deixando de lado a razão), compartilhamos “fake news”, pois esses boatos coincidem com nossas opiniões políticas, religiosas etc. A verdade não é mais tão importante. A sua verdade, ou “pós-verdade”, sobrepõe-se à realidade e os fatos são manipulados ao bel-prazer de cada um.
Vivemos em “bolhas virtuais” onde só há espaço para quem tem opiniões semelhantes. Basta sair dessa zona de conforto para constatar termos chulos regurgitados aos montes nas redes sociais – a palavra “lixo” (pasme!) passou a ser sinônimo de gente e não de excremento. Não há ambiente para o debate democrático e o direito ao contraditório. O mundo virtual tornou-se uma realidade alternativa onde as pessoas despejam suas frustrações pessoais. Fica aqui uma reflexão: você teria coragem de chamar alguém de “lixo” na vida real?
Quando esbarrei no termo “pós-verdade” pela primeira vez, no mesmo instante veio à minha mente uma obra muito conhecida: 1984, de George Orwell. Como assim você nunca ouviu falar nesse livro?! Pare tudo o que está fazendo... ou melhor, termine o artigo e depois leia esse clássico da literatura do século XX. O romance distópico descreve um mundo surreal onde um governo totalitário, liderado pelo Grande Irmão (“Big Brother”, em inglês), controla uma sociedade aterrorizada pela guerra – o livro foi publicado em 1948 e reflete o medo manifesto de uma terceira guerra mundial na época.
Interpretada por muitos como uma profecia escatológica, a obra (uma leitura pesada que deixa o leitor perturbado) mostra como o governo pode manipular a verdade (papel do Ministério da Verdade), inclusive o passado, e monitorar tudo e todos por meio das “teletelas” (ferramentas de controle eletrônico que funcionam como aparelhos de TV e câmeras de vigilância ao mesmo tempo), da Polícia do Pensamento (crianças denunciam os pais com “pensamentos inadequados” e são tratadas como heróis pelo Estado), do “duplipensar” (manipulação das suas próprias ideias) e dos “minutos de ódio” (que lembram muito os tuítes e “posts” carregados de ira nas redes sociais de hoje). A própria linguagem é distorcida para criar um clima de torpor e confusão – a Novafala. Essa dissimulação está expressa no lema do (único) Partido: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. Não surpreende a notícia de que as vendas do livro dispararam em todo o mundo com as revelações de Edward Snowden sobre a espionagem em massa nos Estados Unidos, em 2013, e a eleição de Donald Trump, em 2016.
O que fazer para combater a disseminação de notícias falsas? Em primeiro lugar, aprenda a identificar as “fake news”: sites registrados com domínios suspeitos (diferentes de .com ou .br) podem estar hospedados em países nos quais não há controle sobre propagação de mentiras pela internet e isso dificulta punições em casos de má conduta, sites de notícia sem qualquer informação sobre os seus responsáveis são um perigo, matérias não assinadas pedem uma checagem dos dados, textos cheios de opiniões e discursos de ódio (“haters”) não são jornalísticos e sites com propagandas por toda parte (ads do Google, por exemplo, que encheram os bolsos dos jovens macedônicos) costumam ser produtores/disseminadores de “fake news”.
Cuidado também com o “clickbait” – título chamativo que caça cliques e compartilhamentos nas redes sociais. Desconfie de notícias que não citam fontes e/ou têm origens suspeitas. Ademais, tenha cautela com matérias com muitos erros de português.
Sim, eu sei. O dedo até coça com vontade de compartilhar notícias que parecem tão curiosas ou têm tudo a ver com as suas opiniões. Atenção! Use mais a razão do que a emoção. Pense: que importância tem essa notícia para mim, meus familiares, meus amigos, minha cidade, meu país? Antigamente, a credibilidade de uma pessoa era baseada em seu trabalho, seus estudos etc. Hoje em dia, a confiabilidade de alguém é mensurada pelo número de seguidores em suas redes sociais.
Certa vez, meu pai disse que a geração atual tem muita informação disponível, mas não sabe bem o que fazer com esse monte de dados. Efetivamente, vivenciamos o paradoxo da desinformação: nunca antes na história desse planeta (desconfie do exagero deste autor!), houve tanta informação sendo produzida e difundida e, ao mesmo tempo, nunca existiu tanta mentira sendo espalhada como se fosse verdade.
De fato, a velocidade do mundo atual não necessariamente é convertida em conhecimento. A pressa é inimiga da perfeição – e da verdade. Em contraposição ao 1° de abril, conhecido como o dia mundial da mentira, foi criado o Dia Internacional da Checagem de Fatos – 2 de abril. O objetivo é incentivar a prática da verificação das informações (“fact-checking”) para combater a disseminação de notícias falsas.
Duvide! Verifique! E só depois compartilhe – na dúvida, é melhor não compartilhar.
Há alguns dias, alguém me perguntou o motivo da realização desse trabalho de conscientização sobre “fake news” e “pós-verdade”, que inclui palestras em escolas, faculdades e qualquer instituição entusiasmada com o assunto (entre em contato comigo se tiver interesse em receber a palestra), sem nenhum fim lucrativo, e essa pergunta ficou martelando na minha mente. Confesso que ainda não sei a resposta exata. Porém, sinto que tem algo a ver com essa famosa frase de Martin Luther King Jr., pastor e ativista político, cuja morte completou 50 anos no dia 4 de abril: “A maior tragédia não é a opressão e a crueldade das pessoas ruins, mas o silêncio das pessoas boas.”
Alexandre Guimarães é Jornalista ,professor e servidor público professoralexandreguimaraes@gmail.com