Olhar Direto

Segunda-feira, 29 de abril de 2024

Notícias | Cultura

Filme sobre sertão abre participação brasileira em Veneza

Exibido ontem no Festival de Veneza, "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" é um projeto que remete ao início da carreira de dois dos principais cineastas brasileiros da atualidade: Karim Aïnouz, 43, e Marcelo Gomes, 45.


Finalizado neste ano, o filme que mistura ficção e documentário começou a ser construído em 1999, com uma viagem de quase dois meses pelo sertão nordestino, quando os dois diretores ainda não haviam rodado seus primeiros longas: "Madame Satã", de Karim, só seria lançado em 2002, e "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo, em 2005.

"Essa viagem foi minha formação como cineasta. Muito do 'Aspirinas' surgiu ali. Aprendi mais naqueles meses do que na escola de cinema", conta Marcelo, graduado pela Universidade de Bristol (Inglaterra). Para Karim, a trajetória trouxe descobertas que seriam usadas em seu segundo longa, o "Céu de Suely" (2007), também rodado no sertão.

Para contar melhor a gênese desse filme, a Folha reuniu os cineastas no bar do Excelsior, tradicional hotel do Lido, espécie de anexo do festival e ponto de encontro dos convidados. Na mesa ao lado, indiferente à nossa conversa, o todo-poderoso produtor americano Harvey Weinstein devorava um sanduíche e um refrigerante.

A parceria entre os diretores começou em 1996, quando Karim pediu que Marcelo lesse o roteiro de "Madame Satã". Eles já se conheciam havia dois anos e notavam uma afinidade grande no pensamento sobre cinema. A troca de ideias funcionou, Marcelo se tornou corroterista do projeto e chamou Karim para dividir o roteiro de "Cinema, Aspirinas e Urubus". "Todos os roteiros que escrevo, dou para o Karim ler e vice-versa. São pouquíssimos amigos com quem eu faço isso."

A dificuldade para levantar financiamento para os dois longas ficcionais levou a dupla a pensar numa alternativa mais barata, que pudessem filmar juntos. "Eu não aguentava mais esperar para fazer o 'Madame Satã'. Estava com fome de filmar. Era uma necessidade física", relembra Karim.

Para isso, obtiveram um prêmio do Itaú Cultural para uma pesquisa sobre feiras de cidades nordestinas, que aos poucos foi sendo transformado em um retrato do sertão. "Foi o nosso tubo de ensaio, onde de fato começamos a trabalhar juntos", conta Marcelo.

Cinema artesanal

Com equipe de seis pessoas, eles rodaram 13 mil quilômetros, a partir de Juazeiro do Norte, no Ceará, passando por Pernambuco, Paraíba, Sergipe e Alagoas, improvisando dia a dia os locais de filmagem. "Estávamos à procura de tudo o que encantava e causava estranhamento. Queríamos romper com a ideia de lugar isolado, intacto, esquecido, arraigado numa religiosidade intransponível. Eu até evito usar a palavra 'sertão' para ter um novo olhar sobre esse lugar", conta Karim.

A ideia era se afastar da imagem histórica da região na cultura brasileira. "Encontramos um universo plural, que tem desde uma feira de equipamentos eletrônicos a locais de total desolação", completa Marcelo.

O primeiro resultado dessa filmagem foi o documentário "Sertão de Acrílico Azul Piscina", de 26 minutos, pronto em 2004. Ao montar o curta, os diretores perceberam que poderiam fazer ainda um outro filme, um longa, e selecionaram 70 minutos das imagens que mais gostavam.

Esse "baú de fotos", como define Marcelo, ficou guardado até 2008, quando surgiu a ideia de realizar uma obra que experimentasse mais e encontrasse um jeito diferente de contar uma história.

"Depois de fazer uma série de TV ['Alice', da HBO], que tem um ritmo industrial, eu queria algo artesanal", afirma Karim. Esse jeito foi a construção de uma trama ficcional que costurasse as sequências mais interessantes -- nascia "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo".

Após um ano de trabalho no roteiro, surgiu Zé Renato, o narrador do filme, interpretado por Irandhir Santos. Ele é um geólogo que percorre o sertão para fazer um estudo sobre a construção de um canal e, de quebra, tentar esquecer uma perda amorosa.

"Fizemos um exercício de cinema ao contrário. Em vez de escrever uma história e filmá-la, inventamos uma história a partir de um filme que já existia", afirma Karim.

Ensaio audiovisual

Definida a trama, os cineastas voltaram ao sertão para captar cenas adicionais, para preencher lacunas da ficção em especial tomadas noturnas, inexistentes no material de 1999. O resultado mistura vários tipos de imagem registros em película (super-8 vencido), digitais (sequências filmadas com câmeras fotográficas), polaroids, em uma obra que Karim prefere chamar de "ensaio audiovisual".

Para Marcelo, a variedade de imagens de "Viajo Porque Preciso" faz do filme "um diário de viagens moderno, que dialoga com blogs, fotologs, YouTube e Facebook".

"Esse é o filme do 'Yes, we can', que é possível contar uma história com o que você tiver em mãos, sem os custos tão elevados das formas mais tradicionais de fazer cinema", completa Karim. No total, "Viajo Porque Preciso" custou R$ 400 mil -- "O Céu de Suely", longa anterior dele, tinha orçamento de cerca de R$ 3 milhões.

Depois de Veneza, onde compete na seção Horizontes, "Viajo Porque Preciso" fará sua estreia no Brasil no Festival do Rio, que começa no dia 24. Na sequência, vai à Mostra de SP. O lançamento comercial do filme ainda não está definido.

Para o futuro, Marcelo e Karim já têm ao menos mais um projeto em vista. Querem voltar às imagens que fizeram do Carnaval de Olinda para a instalação "Ah, Se Tudo Fosse Sempre Assim", apresentada na Bienal de 2004.

"Filmamos muita coisa lá e usamos só uma pequena parte na Bienal. Acho que ainda há um filme a ser descoberto", encerra Karim.
Entre no nosso canal do WhatsApp e receba notícias em tempo real, clique aqui

Assine nossa conta no YouTube, clique aqui
 
xLuck.bet - Emoção é o nosso jogo!
Sitevip Internet