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Terça-feira, 07 de maio de 2024

Notícias | Ciência & Saúde

Ferimento após o parto atormenta mulheres na Tanzânia

Deitadas lado a lado numa cama estreita, conversando, rindo e cutucando uma à outra com finos cotovelos, elas pareciam uma dupla qualquer de meninas adolescentes trocando piadas e segredos.


No entanto, a cama estava numa ala de hospital lotada. Entre os momentos de risada, Sarah Jonas, 18, e Mwanaidi Swalehe, 17, deixavam escapar um inevitável ar de tristeza. Grávidas aos 16 anos, ambas deram à luz em 2007, após dias de trabalho de parto. Seus bebês morreram, e a longa duração do trabalho de parto infligiu terríveis danos às mães: um ferimento interno chamado fístula, que as deixou incontinentes e encharcadas de urina. 

No mês passado, no hospital regional de Dodoma, na Tanzânia, elas esperavam cirurgiões especialistas que tentariam reparar o estrago. Para cada uma delas, duas dolorosas operações anteriores já haviam fracassado.

“Será ótimo se os médicos conseguirem,” disse Jonas suavemente em swahili, através de um intérprete.

Em companhia de aproximadamente 20 outras meninas e mulheres, entre adolescentes e mulheres com mais de 50 anos, Jonas e Swalehe haviam enfrentado longas viagens de ônibus de suas vilas até esta cidade quente e poeirenta, para operações pagas por um grupo de caridade, o AMREF, sigla em Inglês para Fundação Africana de Medicina e Pesquisa.

A fundação havia trazido dois cirurgiões, que iriam operar e ensinar médicos e enfermeiras de diferentes partes da Tanzânia como reparar fístulas e cuidar dos pacientes no pós-operatório.

“Esta é uma população vulnerável,” disse um dos especialistas, Gileard Masenga, do Centro Médico Cristão Kilimanjaro em Moshi, na Tanzânia. “Essas mulheres estão sofrendo.”

Cirurgia de baciada

A missão – realizar 20 operações em quatro dias – ilustra os desafios de se oferecer atendimento médico num dos países mais pobres do mundo, com escassez de médicos e enfermeiras, um calor escaldante, equipamentos limitados, eletricidade não-confiável, suprimentos sanguíneos insuficientes e dois pacientes por vez numa única sala de operações – pacientes com uma série de problemas, dos facilmente reparáveis aos impressionantemente complexos.

As mulheres preencheram a maior parte da Ala 2, um comprido edifício térreo com chão de cimento e duas filas de camas muito próximas umas das outras, em paredes opostas. Todas haviam sofrido de trabalho de parto obstruído, significando que seus bebês eram grandes demais ou estavam na posição errada para passar pelo canal de nascimento. Quando prolongado, o trabalho de parto obstruído frequentemente mata o bebê, que fica então amolecido o bastante para caber na pélvis – e assim a mãe pode parir um cadáver.

O trabalho de parto obstruído também pode matar a mãe, ou esmagar sua bexiga, seu útero e a vagina entre seus ossos pélvicos e o crânio do bebê. O tecido danificado morre, deixando uma fístula: um buraco que deixa a urina escorrer constantemente pela vagina. Em alguns casos, o reto é danificado e as fezes vazam para fora. Algumas mulheres também ficam com danos nos nervos da perna.

Um das coisas mais impressionantes sobre as mulheres da Ala 2 era o quão pequenas elas eram. Muitas tinham menos de um metro e meio de altura, corpos pequenos e quadris estreitos, o que pode ter contribuído para seus problemas. Meninas ainda não totalmente desenvolvidas, ou mulheres encolhidas pela subnutrição, muitas vezes possuem pélvis pequenas que as tornam propensas à obstrução do trabalho de parto.

As mulheres usavam cangas, pedaços de tecido amarrados como saias, com estampas chamativas que se destacavam contra a pintura monótona da ala. Por baixo das saias, algumas tinham cangas dobradas entre as pernas para absorver a urina.

Nem mesmo uma cortina separava as camas. Uma brisa morna ocasional soprava pelas janelas vazadas. Moscas zumbiam, e uma gata com um filhote vadiava na entrada. Do lado de fora, cangas que haviam sido lavadas por pacientes ou suas famílias eram penduradas sobre arbustos, varais e pedaços de grama, secando ao sol.

Párias
Conversando com médicos e enfermeiras numa sala de aula do hospital, Jeffrey P. Wilkinson, perito em reparo de fístula da Universidade Duke, apontou que mulheres com fístulas muitas vezes se tornam párias por causa do cheiro. Desde julho, Wilkinson está trabalhando no Centro Médico Cristão Kilimanjaro em Moshi, na Tanzânia, que está colaborando com a Duke num projeto sobre a saúde feminina.

“Encontrei inúmeras pacientes de fístula que foram expulsas dos ônibus,” disse ele. “Ou suas famílias as mandam embora, ou constroem uma cabana separada.”

Para as mulheres na Ala 2, os médicos visitantes alimentavam as maiores esperanças de que elas retornariam a uma vida normal.

As fístulas são uma praga dos pobres, afetando dois milhões de mulheres e meninas, principalmente na África sub-saariana e na Ásia – aquelas que não conseguem fazer uma cesariana ou receber ajuda médica em tempo. Há muito ignoradas, as fístulas receberam uma atenção cada vez maior nos últimos anos, e grupos sem fins lucrativos, hospitais e governos criaram programas, como o de Dodoma, para oferecer a cirurgia.

São citadas taxas de cura de 90% ou mais, mas segundo Wilson, “esse não é um número realista.”

Pode ser verdade que os orifícios são fechados em 90% dos pacientes. Porém, mesmo assim, a mulher com danos e cicatrizes mais amplos nem sempre recupera o controle de nervos e músculos necessário para se manter seca, diz Wilkinson.

Idealmente, as fistulas deveriam ser evitadas, mas a prevenção – que requer educação, mais hospitais, médicos e parteiras, e melhoria nos transportes – permanece muito atrás do tratamento. Mundialmente, ainda existem 100 mil novos casos por ano, e a maioria dos peritos acha que levará décadas para eliminar as fístulas na África, embora o problema já tenha sido erradicado dos países desenvolvidos há um século. Sua presença continuada é um sinal de que o atendimento médico para mulheres grávidas está extremamente defasado.

“A fístula é algo que devemos solucionar,” disse Wilkinson. “Ao achar um paciente com fístula, você também encontrará mães e bebês morrendo à direita e à esquerda.”

No dia anterior à sua cirurgia, Jonas se sentou em sua cama, observando ansiosamente as outras mulheres sendo trazidas da sala de operações. Algumas vomitavam pela anestesia, e ela considerou essa visão desesperadora.

Jonas contou que, aos 16 anos, ela se tornou íntima de seu namorado de 19 anos, sem perceber que o sexo poderia engravidá-la. Isso rapidamente aconteceu. Seu trabalho de parto durou três dias. Quando a cesariana foi realizada, já era tarde demais. Seu filho sobreviveu por cerca de uma hora, e ela desenvolveu uma fístula, assim como danos nervais em uma perna – que a deixaram com um andar desajeitado.

Seu namorado negou a paternidade e se casou com outra, alguns amigos a abandonaram porque ela estava sempre molhada e cheirando urina. Ela vivia com seus pais, duas irmãs e um irmão numa vila rural, numa cabana de barro de dois cômodos. A garota teve apenas um ano de educação e não sabia ler ou escrever, mas espera algum dia retornar à escola.

A sala de operações em Dodoma só tem espaço para duas mesas de operações, separadas por uma tela de tecido verde. Duas por vez, as pacientes entram, vestindo lençóis que haviam enrolado tão graciosamente quanto suas cangas. Algumas são tão pequenas que precisam de escadas portáteis para subir na mesa.

As mulheres recebem uma injeção anestésica na espinha para amortecê-las abaixo da cintura, e então suas pernas são levantadas em estribos. Despertas, elas permanecem em silêncio enquanto os médicos trabalham, Masenga em uma mesa e Wilkinson na outra, cada um rodeado por outros médicos que vieram aprender.

Um ar condicionado produz mais barulho do que ar frio. Moscas passeiam, algumas vezes pousando sobre as pacientes. Um rato corre ao longo do rodapé. Não há nenhum daqueles monitores que dominam as salas de operações nos Estados Unidos. Periodicamente, uma enfermeira tira uma pressão sanguínea.

Na metade da primeira operação a energia falha, e as luzes se apagam. Wilkinson veste uma lâmpada de cabeça a bateria e continua trabalhando, mas Masenga tem de contar com a luz do dia. Seus aventais ficam escuros de suor.

A maioria das cirurgias de fístula é realizada através da vagina, e podem levar de 30 minutos a várias horas. Elas envolvem mais que simplesmente costurar um buraco: é necessária uma delicada dissecação para soltar o tecido próximo, de forma que não haja muita tensão nos pontos – e, algumas vezes, partes de tecido precisam ser cortadas e esculpidas para remendar ou substituir uma área faltante ou danificada. Pode levar várias semanas para se dizer se a operação foi bem-sucedida.

No final da semana em Dodoma, os cirurgiões disseram que das vinte operações, algumas foram diretas e fáceis, e algumas pareciam ter uma boa probabilidade de fracassar. Três pacientes precisavam de reparos tão complicados que foram transferidas ao centro médico de Kilimanjaro.

Inicialmente, parecia que a operação de Jonas havia dado certo, enquanto o panorama para Swalehe era incerto. Logo após as cirurgias, as duas jovens ficaram muito doentes. Swalehe reclamou de dor quando os cirurgiões vieram conferir seu estado. Mas as duas estavam sorrindo no dia seguinte, com esperanças para o melhor. No fim, a cirurgia de Jonas fracassou, e a de Swalehe teve sucesso.

Um dia depois da última operação, os cirurgiões de fístula seguiram adiante, já pensando nos incontáveis novos casos que os esperavam.
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