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Suspeito de assassinar jesuíta espanhol há 30 anos vai à júri nesta quarta

29 Nov 2017 - 08:48

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Acervo Histórico Conselho Indigenista Missionário (CIMI)

Vicente Cañas Costa

Vicente Cañas Costa

Foi há 8.300 km de sua terra natal, Alborea, que o jesuíta espanhol Vicente Cañas Costa foi morto, em 6 de abril de 1987, enquanto se banhava as margens do rio Juruena, em local denominado “Caixão de Pedra”, na reserva indígena Salumã, em Juína, Mato Grosso. À golpes de porrete e facadas no abdômen, o defensor dos "Beneditinos da selva", termo que definida os índios Enawenê-Nawê, foi brutalmente assassinado. O corpo de “Kiwxí", como o povo adotivo o chamava, foi encontrado somente em 16 de maio. Seus pertences foram destruídos. O caso permaneceu sem julgamento por 30 anos.

Hoje, em 29 de novembro de 2017, a Justiça Federal em Mato Grosso submete a Tribunal de Júri o último sobrevivente envolvido no assassinato de Vicente Cañas. Um rito histórico que poderá dar fim a 30 anos de impunidade. 

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Vicente Cañas nasceu em Alborea, Espanha, em 22 de outubro de 1939, em meio a uma grande família de 10 irmãos. Aos 22 anos, no dia 21 abril de 1961, entrou para a Sociedade de Jesus, no interior do país, tornou-se jesuíta. Foi designado para atuar como cozinheiro em outra cidade espanhola, quando deixou-se tomar pela vocação missionária. Liderou os Irmãos da Província Jesuíta de Aragão. Este grupo seria enviado para atuar no Brasil, onde seu destino seria selado.

Fundou raízes em Mato Grosso, no dia 19 de janeiro de 1966, durante o governo do general Castelo Branco. Iniciou seu contato com indígenas brasileiros por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai) em uma tragédia que marcaria sua vida neste país.



Funcionários da Funai, ao entrarem em contato com a tribo “Beiço-de-pau”, no norte de Mato Grosso, trouxe a gripe, doença que dizimou quase toda a população indígena local. Dos 600 nativos, sobreviveram 40. Ficou a cargo de Vicente Cañas cuidar da saúde deles. Com sucesso. Por seus serviços prestados, foi adotado pelos “Beiço-de-pau”, com quem viveu entre outubro de 1969 e abril de 1970.

Em seguida, Vicente explorou o noroeste do Estado, onde avistou as tribos Miky e Paresi, a quem dedicou cinco anos de sua vida. Em 15 de agosto de 1975, encerrou seu vínculo institucional e religioso com a Sociedade de Jesus, na Espanha. Jamais voltaria para terra natal.



No fim daquele ano, iniciou contato com os Enawenê-Nawê, a quem dedicou, na qualidade de um dos raros brancos que tiveram contato com aquela população, serviços de saúde, na tentativa de desenvolver imunidade dos indígenas às doenças estrangeiras. Embora apegados às tradições, os Enawenê-Nawê foram rebatizados com o termo cristão "Beneditinos da selva”.



“Ele tinha um respeito muito grande pelos povos indígenas Enawenê-Nawê, tanto que nunca se comprometeu a inserir na comunidade de modo que os constrangesse ou os limita-se, permitindo-os que vivessem sua cultura. Assim, optou por morar na divisa da aldeia (não dentro). Era um habito dele”, avalia o sociólogo Inácio Werner, que integra o Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso.

A partir de 1984, Mato Grosso tornou-se pequeno demais para a ganância dos pecuaristas. O território Enawenê-Nawê foi paulatinamente invadido. As fontes de água tornaram-se inacessíveis e as terras, improdutivas.

Ainda assim, Vicente patrocinou avanços inacreditáveis para a comunidade Nawê, à época. estimulava rituais, ajudava na pesca, nos plantios, na coleta de mel, frutas e tubérculos, na produção de artesanatos e utensílios. Ajudou a desenvolver a língua local, escrevendo um livro-diário com mais de 3 mil páginas. 



Mesmo apaixonado pelos indigenas, mantinha sempre a distância quando voltava-se às práticas européias. Para isso, construiu uma cabana à um dia de caminhada de distância (ou 6h de barco), lá passava seus dias quando sentia saudades da música clássica ou quando ia se comunicar com o exterior por rádio-amador. Lá também fazia quarentenas quando contría doenças que julgava incuráveis para o delicado metabolismo dos indigenas.

Para camuflar-se entre os amigos, despia-se para viver em comunidade. Roupas, somente do lado de fora. Essa prática respeitosa e militante corria na boca miúda entre os fazendeiros da região. A política de limpeza étnica, adotada e patrocinada por empresários, madeireiros e políticos ligados ao agronegócio, que futuramente marcaria a importância de Mato Grosso no cenário nacional, viu em Vicente um formador de opinião, um líder.

O Crime:

No apagar das luzes da ditadura militar, no fatídico dia 06 de abril de 1987, Vicente Cañas Costa foi brutamente assassinado durante um banho de rio. 

Já misturado a terra, devido ao abandono por cerca de 30 dias, o corpo do jesuíta jazia mumificado, ao solo. Solo a que dedicou seus trabalhos por anos. Em seu abdômem, marcas de perfurações de quatro centímetros revelam a brutalidade das facadas.

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) agrava o relato da morte do colega de missão. O crânio do jesuíta foi quebrado, golpes foram dados para atingir o coração da vítima e os órgãos genitais foram cortados ou arrancados.

Objetos pelo chão testemunharam uma luta sangrenta que o espanhol travou pela vida. Conforme os autos, datados de 2001, perto da vítima foi encontrado um barco furado, utensílios de barraca extraviados, chinelos jogados ao longe um do outro, e sangue, muito sangue. Por todos os lados, nas roupas, na burduna e nos óculos, quebrados com emprego de violência, segundo parecer técnico.   

“Seu corpo foi arrastado para fora da cabana para que os animais o comessem e destruíssem as provas. No entanto, foi encontrado 40 dias depois, mumificado e conservado. Na manhã do dia 22 de maio, ele foi enterrado como os indígenas, em sua própria rede, em um buraco cavado a 4 metros de distância de onde o corpo havia sido encontrado. Vários indígenas Enawenê-nawê, Rikbaktsa e Mÿky, juntamente com vários missionários e leigos, fizeram seu sepultamento”, relata o CIMI.

Na Justiça Federal, a luta demoraria 30 anos. Três décadas de impunidade, lamenta Inácio Werner. “Nunca se conseguiu apurar o caso de modo a garantir uma audiência e realizar o julgamento. Sempre houve proteção para que o caso não fosse julgado. Sempre houve uma armação para evitar que os mandantes fossem levados a julgamento, tanto por parte da polícia como de todo o pessoal envolvido na morte. Tudo foi feito para não incriminar ninguém".

Local onde o corpo de Vicente Cañas foi sepultado pelos indígenas.

A Justiça:

A denúncia do caso foi feita inicialmente pelo Ministério Público Estadual (MPE) e levada ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), em 30 de dezembro de 1993. Inicialmente a ação incluía as pessoas de Antônio Mascarenhas Junqueira e Camilo Carlos Óbici. Porém, por meio de Habeas Corpus (HC) junto a Segunda Instância do Tribunal Estadual, Mascarenhas foi retirado da lista de réus da ação penal. Pouco tempo depois, Camilo Óbici também teve seu nome retirado.

Pouco tempo depois, a justiça Estadual entendeu pela competência da Federal para julgar o caso, designando os autos para o Procuradoria da República, que apresentou sua denúncia inaugural somente em 27 de agosto de 1999.

A sentença de pronúncia, proferia somente três anos depois, em 07 de novembro, pelo magistrado Jefferson Schneider, da Segunda Vara da Justiça Federal, não apresenta dúvidas: trata-se de homicídio duplamente qualificado por emprego de emboscada e uso de arma branca cortante.

Ao lado da reserva indígena Salumã, onde Vicente Canãs fixava moradia à época, fica a “Fazenda Londrina”, de propriedade do acusado Pedro Chiquetti, o qual tinha por capataz o acusado José Vicente da Silva. Depoimentos trazidos aos autos confirmam um histórico de embate entre o produtor rural e os indígenas.

À par da disputa, figura o terceiro acusado, o delegado aposentado da Polícia Civil Ronaldo Antônio Osmar, que segundo a denúncia, era “conhecido na região por atuar em prol dos fazendeiros e madeireiros, pressionando índios e funcionários da Funai” a abrirem mão da disputa pela terra. O quarto e último acusado, Martinez Abadia da Silva, apresentado aos autos como “conhecido pistoleiro da região”.

As investigações, no início dos anos 2000, contou com a confissão do último acusado. À frente dos índios Paulo Tompeba e Adalberto Pinto, Martinez Abadia da Silva confessou ter recebido dinheiro de Ronaldo Antônio Osmar, à mando de Pedro Chiquetti, “para que juntamente com outros elementos, mediante emboscada, ceifasse a vida da vítima. A negativa de autoria não encontra respaldo nas provas do processo”, consta da sentença.

Razão pela qual, o magistrado Jefferson Schneider entendeu pela pronúncia, nos termos originais da denúncia, contra Martinez Abadia da Silva, Ronaldo Antônio Osmar, Pedro Chiquetti e José Vicente pelos crimes previstos no Artigo 121, § 2, I e IV do Código Penal, isto é: homicídio “I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;” e “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido”.
 
“Desde o primeiro momento após o assassinato suspeitou-se dos latifundiários da região, que não aceitavam a defesa que o jesuíta fazia pela demarcação do território tradicional indígena. Presume-se que a ordem de executar Vicente partiu do então proprietário da Fazenda Londrina (Pedro Chiquetti), já falecido, embora a execução tivesse ficado a cargo de três outras pessoas. Essas três pessoas foram mais tarde assassinadas, para não revelarem a verdade sobre os fatos. Além de Ronaldo Antônio Osmar, comissário da Polícia da região naquela época e encarregado da investigação do crime, não há mais suspeitos vivos ou com idade legal para serem julgados”, lamenta o CIMI. 

Pronunciada a sentença, rito que antecede o Júri, uma sequência de acontecimentos pôs fim ao desenrolar do processo. Pedro Chiquetti, Martinez Abadia da Silva e José Vicente morreram. Restou apenas o ex-delegado da PJC Ronaldo Antônio Osmar.

Em 2006, o réu sobrevivente foi à júri da Justiça Federal e obteve vitória, para o lamento dos amigos de Vicente Cañas. Osmar foi absolvido pelo Tribunal Federal de Cuiabá por 6 votos a 1. O Ministério Público Federal (MPE) apelou da sentença argumentando que evidências importantes haviam sido omitidas. Trata-se nada menos que do crânio do jesuíta, que desapareceu de Cuiabá e foi encontrado mais tarde em uma caixa, em um ponto de ônibus em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Em 2015, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com novo recurso e o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região acatou, determinando a realização do novo julgamento, que acontece às 9h desta terça-feira (29).



"Sabemos que depois de tudo o que passou, o caso está prescrito, a pessoa (réu) não está mais apta ao cumprimento da pena, ainda que condenado. É mais uma questão de honra, mínima, pois em Mato Grosso, de todas as 150 mortes por conflitos de terras em Mato Grosso, nenhum mandante foi preso. Considero importante, mas é uma pena termos uma justiça que não só tarda, como falha. Se quisessem ter apurado o crime para julgá-lo, efetivamente, deveriam te feito isso em 1987. Nunca houve interesse”, lamenta o sociólogo Inácio Werner.
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