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ENTREVISTA ESPECIAL

'Tornozeleiras substituem paredes que o Estado não construiu', dispara juiz de Execuções Penais; veja entrevista

03 Jan 2018 - 10:25

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Rogério Florentino/OlharDireto

Geraldo Fidelis

Geraldo Fidelis

Na Penitenciária Central do Estado (PCE), 2.100 pessoas ocupam 891 vagas. Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC), 850 em 380 vagas; Centro de Ressocialização de Várzea Grande (CRVG): 380 para 180.

"Superlotação, não, hiperlotação!", corrige Geraldo Fernandes Fidelis ao ser questionado sobre os presídios de Cuiabá e Várzea Grande. Sintomas do inchaço do sistema penitenciário que afeta a todo país, da crise financeira que assola o Estado e da falência das políticas de combate as drogas e ao crime organizado.

Para o magistrado da Vara de Execuções Penais de Cuiabá, entretanto, a crise é solucionável e o exemplo não está na Europa, mas bem próximo, no sistema semi-aberto de Minas Gerais. Confira abaixo a segunda parte da entrevista concedida pelo juiz ao Olhar Jurídico

Leia mais:
Primeira Parte: "Cada processo deste é uma vida": a rotina de um juiz responsável por 8 mil presos de Cuiabá e VG; Veja entrevista


Semiaberto:

“Mato Grosso não construiu colônias penais, pois se houvesse hoje quase 2 mil pessoas com tornozeleira iriam para lá. Todos que vão para o chamado ‘semiaberto’ deveriam ir para uma colônia penal, que nada mais é do que uma cadeia com nome de colônia, uma cadeia onde o sujeito precisa estar internado todas as noites, eventualmente podendo sair para a rua para trabalhar em alguma instituição do governo. Ou seja, pegaria um ônibus do governo, iria para o trabalho e de lá voltaria para dormir. Poderia ser uma fabrica de tijolos, de artefatos, em construção de casas, de creches, enfim. Em Campo Grande é assim, em Goiânia é assim. O semiaberto prevê quatro saídas ao longo do ano (Natal, Ano Novo, Páscoa e Dia das Mães), em um presídio fechado não tem nenhuma...”.

...nem indulto de Natal...?

“Não temos indulto de Natal, regime fechado não tem indulto”.

O que falta para termos regime semiaberto em Mato Grosso?

“Falta investimento do Estado. Não digo deste governo especificamente, mas de todos os governos que passaram por aqui...”.

Não seria falta de cobrança da justiça?

“Não, é dever de construir do Estado, como fizeram com o fechado, ou melhor, falta até mesmo vagas no fechado! Vejamos: Penitenciária Central do Estado (PCE) hoje tem 2.100 pessoas – quando o limite é de 891 vagas; Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC) tem 850 pessoas ocupando 380 vagas; Centro de Custódia da Capital (CCC) são 47 pessoas ocupando 45 vagas; Ana Maria Couto May são 191 pessoas ocupando 180 vagas; Centro de Ressocialização de Várzea Grande (CRVG) são 380 pessoas ocupando 180 vagas. Portanto, temos 3.600 presos para 1.670 vagas. Em Mato Grosso, 11.400 presos para 6.500 vagas”.

Superlotação...

“Hiperlotação. O presídio feminino e o CCC nem tanto, por enquanto”.

Expectativas de melhora?

“Estive em uma reunião com Secretário de Estado de Justiça Fausto Freitas, que informou previsão de abrir 1.300 novas vagas para Várzea Grande e Peixoto de Azevedo, torço muito para que isso se concretize, é muito importante para o Estado”.

É uma questão de segurança pública...

“Quando se fala em administração pública, sempre falamos em escolas, hospitais e estradas, são importantes demais, mas também investir na segurança pública e no sistema penitenciário. Não adianta policiais militares nas ruas e civis na parte de inteligência, investir em repressão, se não tem onde guardar os presos. E mais, essa guarda precisa ser voltada para a recuperação, que é um processo difícil. Se a pessoa foi bombardeada, foi negada, que errou, são várias situações, em casa, na escola, na família, na sociedade. Ele ta pagando por isso. Que tipo de pessoas queremos que eles saiam de lá? Melhores. Sem investimentos, não sairão melhores”.

Esse ano foi marcado por forte influência do Comando Vermelho nos presídios de MT:

“Eu sou contra deslocamentos para penitenciárias federais. As pessoas saem daqui e vão para qualquer uma destas federais, em Mossoró (RN), Paraná, Mato Grosso do Sul, eles vão com uma patente e voltam como generais. A pessoa vai como preso comum e volta potencializada, supervalorizada e respeitada. Para nós é como dizermos: ‘estudei na USP, estudei em Harvard’, no crime também tem os que voltam ‘de lá’ com idéias. Surgem então as arregimentações, fenômeno nacional que foi crescendo. Essas organizações, como outras, são fenômenos nacionais, eles brigam entre si, inclusive, fazem alianças e separam-se. Tinha uma aliança informal aqui existente, em setembro do ano passado houve uma quebra onde prevaleceu um grupo. Existem outros grupos por aí e minha preocupação é não juntá-los, pois não quero ver Cuiabá capa das principais revistas e jornais do mundo, com aconteceu com Manaus no ano passado. É uma atenção grande para disciplinar essa questão”.

No que consiste essa “atenção grande”?

“É ter repressão nos presídios, para evitar entrada de celulares, objetos proibidos, instalar interceptação telefônica. É preciso exterminar essas situações, mas é difícil, há muitas lacunas”.

É possível um presídio que garanta todo esse controle?

“Eu conheço um, estive lá semana passada”.

Qual seria?

“Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), que possui mais de 40 unidades em Minas Gerais. Bem, o que eu falar para ti você não acreditará, pois eu também não acreditava, mas é verdade: o preso pode ter a chave da penitenciária, tem mais de 18 saídas sem escolta e nenhuma fuga foi registrada em seis anos, não tem celular lá dentro. Conheci um músico, barbudo, careca, gente boa, de uma banda de rock, que foi preso por homicídio e pagou na APAC. Lá há presos de diversos crimes, mas não se discute criminalidade lá dentro. Existe uma confiança e uma limpeza interna muito grande entre eles. É possível. Tenho um amigo que foi secretário de Justiça e Direitos Humanos que foi conhecer uma penitenciária da Alemanha. Lá eles disseram: ‘Coronel, volte para o Brasil e vá visitar Minas Gerais, que é padrão nessa área’. Nós próprios não conhecemos”.

Qual o milagre deles?

“Eles tem os três regimes na unidade: fechado, semiaberto e aberto. Eles entram com muito amor, carinho, atenção, firmeza e disciplina. Há toda uma instrução para a montagem deste sistema. Eu queria muito ele em Mato Grosso. Tento vislumbrar, como colocar ele aqui se não há sistema semiaberto? Semiaberto aqui é na rua, com tornozeleira, e aí fragilizaria a APAC, que precisa do semiaberto. É preciso ter essa diferenciação, para que eles tenham a opção, para que possam escolher renovar e renovam! Somente 7% dos que saem de lá voltam para o crime”.

Melhor que um sistema privado?

“Nos Estados Unidos, que possui sistema totalmente privado, 70% deles voltam para o crime. Lá, isso aqui (aponta para um amontoado de pastas), não são pessoas, são papéis, documentos, e quanto mais prende, melhor, porque é privado, é dinheiro e quanto mais gente na cadeia, maior o lucro. É diferente a pegada, entende?”.

Então o Sr. é contra a privatização dos presídios...

“Sou contra, sou contra, depois de pesquisar, estudar e verificar diversas unidades, eu te falo com tranqüilidade: sou contra. Mas, e a APAC, o que é? É uma associação, com Lei Autorizativa Estadual. São unidades grandes, de 40, 80 120 e até 200 presos. O local abriga todo tipo de criminoso: por latrocínio, tráfico, roubo, estupro...crimes em geral”.

O que temos em Mato Grosso que mais se assemelha a isso?

“O Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC) é quase semelhante. O trabalho deles é padrão aqui. Teve uma situação em que um membro da imprensa, que estava dentro do CRC, viu uma pessoa vestida de amarelo e perguntou: ‘essa pessoa não é aquela que praticou tal e tal crime?’, eu falei que sim. ‘E ele anda solto?’. Falei, ‘não, senhora, você é que está presa. Nós estamos presos aqui dentro’ (risos). Porque lá dentro parece uma escola, uma oficina, com todo mundo trabalhando”.

Por que não acontece o mesmo com a Penitenciária Central do Estado (PCE)?
“Porque está superlotado, hiperlotado. Está inseguro por falta de agentes, em todo Estado na verdade, mais principalmente lá, que possui cerca de 2.200 pessoas. O ambiente fica tenso, muito mais tenso. Tem uma ala lá que se chama ‘shelter’ (abrigo, em inglês), que há 02 anos não possui ocorrência lá dentro, não tem vício, tem igreja, o lugar parece uma escola também. Cheguei lá uma vez e havia 200 pessoas lá dentro, paradas, assistindo “Transformers” (filme), bom para espairecer. Eu penso o seguinte: a pessoa que está presa precisa trabalhar e estudar, isso é terapia. Eles querem isso! Aí o senso comum diz: ‘ah, eles não querem trabalhar, são vagabundos’. Inverdade! Eles querem trabalhar, mas temos que dar empregos para eles lá dentro. Levar fábricas, oficinas”.

Há um exemplo nacional neste aspecto?

“A própria APAC, que em Itaúna-MG recebe a Fiat e a Mercedes, que montam ares-condicionados lá. As peças são feitas com espátulas e canivetes”.

Em Mato Grosso, qual o mercado que poderia abraçar essa mão de obra?

“Essas cidades do interior são magníficas, lindas e boas para acolher as pessoas. E mais, essas pessoas poderiam gerar riqueza na cidade, trabalhando na construção de creches, de praças e escolas. Por que não? Estamos buscando contato com as prefeituras, quero avançar neste sentido, buscar contato com Várzea Grande. Claro, faremos todo um trabalho psicológico com esse recuperando, para saber quais têm condições de sair”.

É preciso haver diálogo com o Estado também...

“Nós estamos tendo agora, com o novo secretário (Sejudh), um bom contato com o Estado. Tivemos uma reunião recentemente, onde discutimos a questão dos médicos, de saúde, da população carcerária, de várias coisas”.

Neste aspecto o TJ poderia intermediar este diálogo entre o Poder Executivo e a iniciativa privada...

“Sim, lembro-me que o desembargador Orlando Perri, quando presidente do TJ fez uma reunião com a FIEMT. Nós podemos retomar este diálogo. Ocorre que houve um afastamento por certo período. Mas, com este novo secretário da Sejudh, Fausto Freitas, vamos realinhar o discurso. Estou confiante com o período de retomada de diálogo que estamos vivenciando”.

Quais as expectativas para o ano de 2018?

“Ah...aqui todo dia tem novidade...todo dia acontece de tudo...torço para que não haja rebelião, nunca passei por uma graças a Deus, estou há cinco aqui. Aqui era uma Vara que em 08 anos passaram 15 juízes”.

Por que da alta rotatividade?

“Depois que se aposentou o Dr. Bráulio, ficaram apenas juízes temporários e cada um fazia o que pensava em fazer e veja, Execução Penal, quem é do direito sabe, não possui nem disciplina nas faculdades. Em cinco anos de curso, talvez três aulas, se é que tem. Mas, não adianta a força da Polícia Militar, a investigação da Polícia Civil, fazer um inquérito, encaminhar o inquérito para o promotor de Justiça, para o Ministério Público fazer a denúncia, o juiz recebê-la, fazer a instrução processual, emitir sentença, então vem os recursos, no TJ, se é que não vai para Brasília, para depois não ter onde executar... para ser uma piada? Uma comédia? Um teatro? Temos que investir e isso eu falei até para o governador: ‘governador, é importante concurso para PM, PJC, mas temos que ir a um restaurante, passear na praça, sair com a família no Parque Mãe Bonifácia e não ser assaltado, deixar o carro dormir na rua sem ter o vidro quebrado, sem tê-lo furtado. É importante a força da PM e a inteligência d PJC, mas isso implicará em que? Mais prisões. Ótimo, bom para a sociedade, mas vão prender onde, se não mudarmos isso aqui?. Aqui só não estourou em razão das audiências de custodia”.

E suas tornozeleiras...

“Elas servem para substituir as paredes que o Estado não construiu em Mato Grosso. Não temos colônia penal. Não se trata de soltar. Aqui nunca soltei nenhuma pessoa com o intuito de desocupar vaga, não é isso e não farei isso, Deus me permita nunca fazer isso. Mas, é difícil entrar em uma penitenciária onde cabem 10 pessoas mas tem 43 lá dentro. Você olha para o chão e não o enxerga”.

E a humanização?

“Como humanizar essas pessoas? Fica um em cima do outro, cinco de pé para caber todos. Aí você faz uma reportagem sobre isso e vêm os comentários: ‘mas tem que sofrer mesmo’. É uma visão de senso comum, dizem isso porque nunca aconteceu no ninho familiar deles”.

Situação grave...

“Gravíssima, graças a Deus ainda não tivemos um problema maior. Mas, pode acontecer? Pode. Quando? Qualquer hora dessas, se não mudarmos as coisas”.
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