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ENTREVISTA ESPECIAL

Lei do Abuso de Poder no Senado é projeto "de organização criminosa", dispara juíza Selma; veja entrevista

27 Nov 2016 - 17:43

Da Reportagem Local - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Rogério Florentino Pereira/OD

Selma Rosane Arruda, em entrevista

Selma Rosane Arruda, em entrevista

Aprovado como matéria de urgência, no último dia 23, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 280/2016 ou “Lei do Abuso de Poder”, é de autoria do presidente do senado e aliado do presidente Michel Temer (PMDB), Renan Calheiros (PMDB-AL). Na teoria, é lindo: visa evitar que magistrados e promotores do Ministério Público (MP) extrapolem de sua autoridade, evitando afrontar a Constituição e os Direitos Humanos. Na prática, revela pequenas armadilhas: poderá anistiar (perdoar) todos os crimes de “Caixa 2” cometidos até agora, zerando o mundo do crime e puxando o tapete da “Operação Lava Jato”.

Para a magistrada da Sétima Vara Criminal de Cuiabá, Selma Rosane Arruda, a verdade deve ser dita em alto e bom tom: a PLS 280 é a resposta “de uma organização criminosa hoje instalada no Poder Legislativo”. Prestes a se aposentar, garante não temer responder a um processo criminal pelo trabalho que desempenhou na justiça de Mato Grosso e vê com bons olhos a atuação de seu colega, Sérgio Moro, “que hoje administra o país”. Veja a íntegra da entrevista, abaixo:

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Dra. Selma Arruda: o Projeto de Lei do Senado 280/2016 justifica que a Lei 4.898, de 09 de dezembro de 1965, relativa ao abuso de autoridade, está defasada e precisa ser repensada, em especial para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988, para que se possam tomar efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade. A que abuso ele se refere?

“A Lei 4.898 não precisa e nem merece ser modificada neste momento, muito menos com este condão que querem dar a ela, no sentido de penalizar juízes e promotores por abuso de autoridade. Não é questão de se pretender blindar juiz e promotor. A questão é que a maneira como está posto este projeto é uma ameaça para nosso livre exercício profissional. É como se você quisesse punir um policial militar por que ele revistar uma pessoa na rua. Caso se descubra que o cidadão não cometeu nada, deve o policial ser punido? Não, pelo contrário, o Estado tem direito e o dever de investigar e se, porventura, aquela investigação não chegar a lugar nenhum, isso, por si só, não é abuso de autoridade de quem investigou. O projeto pretende inverter este princípio administrativo que concebe ao Estado o dever de investigar e ao próprio Ministério Público o direito de perseguir o crime, investigá-lo até à punição”.

O PLS 280 também alega corrigir defasagens na Lei anterior, atualizando os crimes de abuso de autoridade em situações específicas, mormente para coibir e punir condutas que escapem ao Estado de Democrático de Direito, ao pluralismo e à dignidade da pessoa humana. Estas ditas defasagens existem?

“Ainda que existam, você precisa direcionar as mudanças somente para juízes e promotores? Exatamente neste momento em que estamos combatendo a corrupção? Neste momento de Lava Jato? Isso não diz nada? Será que a população não está percebendo qual é a intenção verdadeira? Quer dizer, se quiserem fazer isso, façam, mas em outro momento, como reflexão, como debate, mas não uma coisa feita açodadamente. Veja que a intenção é tão clara que eles inseriram estas duas propostas no meio das 10 medidas contra a corrupção. Então de 10 virou 12 sendo que duas são as que vão salvar a corrupção do país. Uma destas propostas é a de anistiar todo e qualquer ato de corrupção anterior, acabando com 99% da operação Lava Jato e a outra vai acovardar juízes e promotores para investigações futuras. Então, olha...é uma pá...uma pá não, um caminhão de cal por cima de qualquer tentativa de combate à corrupção”.

Os congressistas que temos hoje em Brasília tem envergadura moral para propor esse tipo de mudança?

“Veja, não são apenas estas as tentativas, não. Existem outras, como a de tentar reduzir nossos salários pela metade, para fazer com que metade dos profissionais saia para procurar outros meios de sobrevivência, tentativas de diminuir a qualidade da magistratura, do MPE, etc. Então, não é o único ataque que estamos sofrendo. Todavia, este projeto é aviltante (infame), pois ele está inserido nas ‘10 Medidas contra a Corrupção’, então é uma gozação com a gente”.

Qual o ponto mais absurdo da Lei, na sua visão?

“O ponto mais absurdo que acho não é nem da redação do projeto em si, mas o momento em que ele é apresentado à nação, o contexto é absurdo e a maneira emergencial com que querem aprová-lo. Não houve audiência pública, consulta pública, nem um estudo razoável, como outras leis, que levam décadas para serem aprovadas. Esta não. Foi inventada ontem e hoje deve ser aprovada de carona em um conjunto de medidas de iniciativa popular que tiveram mais de dois milhões de assinaturas. É uma afronta”.

O MPF se posiciona?

“Eles estão se posicionando. Vários membros do MP, inclusive esta semana a ONG Transparência Internacional também se manifestou a respeito destas tentativas da criminalidade organizada reagir contra o combate a elas. A sociedade está tentando se manifestar. Só que este tipo de assunto é tão específico que talvez a maioria das pessoas não entenda a importância de se debatê-lo. Há uns tempos tivemos por causa de um aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, metade do país foi para as ruas protestar. Hoje, que estamos correndo o risco de colocar o Brasil a baixo e de virarmos uma Itália da geração da “Operação Mãos Limpas” e as investigações não darem em nada, as pessoas não estão se dando conta porque não tem ninguém patrocinando".

Como assim?

"Quando havia interesses contrários ao partido que estava no poder anteriormente, alguém patrocinou este levante do Brasil para às ruas, ao passo que hoje, as medidas que eles estão tentando aprovar vão fazer bem para todos os partidos, de modo que nem um lado se interessa em conscientizar o povo e levantar essa questão”.

Crê que exista relação entre esse projeto e aquele “pacotão” para “estancar a sangria”, conforme dito pelo senador Romero Jucá (PMDB), nos grampos telefônicos da Lava Jato?

“Com certeza, é fruto, é uma clara tentativa de estancar a sangria. Existem juristas que estão publicando vídeos sobre essa questão. Destaco Luiz Flávio Gomes, talvez o maior especialista em direito penal no país, que já fez sua manifestação a esse respeito também, de forma técnica. É muito importante que a gente espalhe isso para conscientizar o maior número de pessoas, pois nós não temos patrocínio”.

Na prática, quais as primeiras consequências da Lei na Lava Jato e na Sétima Vara Criminal?

“A Lava Jato será extinta em mais de 90%, será esvaziada. Em Mato Grosso, vários processos serão anistiados, pois a maioria da propina é oriunda de caixa dois ou é para pagar dívidas de campanha. Então, se você anistia isso tudo, está anistiando todos os bastidores da propina no Brasil. A consequência é catastrófica porque vai deixar estas pessoas com todo o dinheiro que elas desviaram, não vão precisar devolver, não serão penalizados, vão ficar ficha limpa, podendo se candidatar novamente. Vai ser uma pizza enorme, uma vergonha internacional. O prejuízo que isso vai dar na visão internacional do país é incomensurável, um caos completo, sem contar a desmoralização ética pela qual iremos passar”.

Pode nos dar um exemplo?

“Imagina se houver anistia em função de caixa dois, suponha que fique estabelecido isso para os crimes cometidos até 2015. Ponto. Tudo o que foi praticado de 2015 para trás está perdoado. Assim, ainda que amanhã ou depois você descubra algo que aconteceu, não vai poder processar ninguém, pois, foi cometido antes daquele ano. Então, está se protegendo o que já foi descoberto, o que ainda não foi descoberto e ainda está amedrontando quem pretende investigar coisas que irão cometer daqui para frente. Percebe o tamanho da coisa? É grave”.

Ou seja, zera o jogo para os políticos de carteirinha, que já fizeram sua história no mundo da corrupção aqui e passa a valer somente para os futuros corruptos?

“Exato, e ainda assim amedrontando quem puder investigar. Ou seja, é um baita passaporte para o crime”.

Entendo...

“...o que o juiz tem garantido na Constituição Federal é a garantia de não ser transferida dessa Vara sem que eu queira sair daqui, para que? Para eu ter independência nas minhas decisões, para eu não ter medo! Se uma pessoa elogia a Selma por sua coragem, é porque a Selma tem garantias constitucionais. Eu não seria corajosa se não as tivesse. Se eu soubesse que hoje eu fosse dar uma decisão e amanhã pudesse ser transferida para o...

...Centro de Custódia da Capital (sic)?

“Pois é... (risos), para o Centro de Custódia ou para outra Comarca, em represália, enfim, certamente que eu pensaria duas vezes. O juiz precisa destas garantias para fazer justiça. Eu não posso ser punida por meus entendimentos, exceto se, obviamente, houver má fé ou dolo. Estaria, no caso, cometendo crimes já previstos em lei. Não precisa criar outro crime”.

Por exemplo?

“Se uma denúncia infundada for recebida pelo magistrado”.

Passaria a ser crime?

“Sim, mas qual é o teu conceito de infundada? Qual o meu conceito de infundada? Qual o conceito dele? Quer dizer, eles põem este subjetivismo para exatamente elastecer os casos que se quiser adaptar ao bel-prazer, em prol do crime. Entende?”

A juíza Selma Arruda vislumbra alguma conduta exagerada por parte de seu colega, Sérgio Moro? Algo que escape ao Estado de Direito?

“As notícias que temos a cerca das decisões do colega são as que a mídia veicula. Não tenho conhecimento dos processos para afirmar com 100% de garantia, mas até agora nunca veicularam nenhuma decisão abusiva de Sérgio Moro. Pelo contrário, ele é muito comedido e formal e que se expõe muito menos que eu. Jamais poderia dizer que ele comete algum tipo de excesso”.

Impressão minha ou está havendo um conflito entre o político e o jurídico?

“Ah, sim...mas veja: Quando a ordem social não está correta e as coisas não estão andando direito, tudo fica judicializado. Se a saúde não anda direito, você entra na justiça para conseguir remédio de alto custo ou obter uma vaga numa UTI. Acontece o que? O juiz assume uma função que não é dele, ao passo que ele não pode se negar a decidir algo que vier para ele. Assim, o juiz acaba virando um gestor da saúde pública. O exemplo que estou te dando, de certa forma acontece agora com a Lava Jato. O juiz Sérgio Moro está administrando a política do Brasil neste momento e claro você dá um tapa e acaba recebendo a resposta. Como esse projeto: uma clara resposta de uma organização criminosa contra a ação do judiciário”.

Para finalizar: a PLS 280 é um golpe? A magistrada Selma Arruda se sente intimidada?

“Intimidada, nunca. Injuriada, sim, como cidadã, juíza, magistrada. Digo-te mais: estou prestes a me aposentar. Ainda que essa lei seja eventualmente aprovada, não temo nem um pouco em responder a um processo criminal, pois isso não irá afetar minha carreira, que está chegando ao final. Devo te dizer o seguinte: acho que a gente precisa reagir, não vendo isso como um golpe, pois não é um golpe no sentido político, é um crime, é a resposta de uma organização criminosa instalada no Poder Legislativo”.
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