Olhar Direto

Sábado, 27 de abril de 2024

Opinião

Por que a falência parece assustar mais os credores do que os devedores?

Quando uma empresa ou uma pessoa física já não consegue mais pagar suas contas em dia, ela pode pedir a autofalência (ou auto insolvência no caso de pessoas físicas não empresárias). A falência também pode nascer do pedido de um credor que tem a cobrança de seus créditos frustrada, porém, o mais corriqueiro, para uma empresa, é ela ter sua falência decretada dentro de uma Concordata – antes de 2005 – ou em uma Recuperação Judicial – RJ depois de 2005 – desta forma, uma empresa pede socorro à justiça, RJ atualmente, e se mesmo com o socorro judicial ela não consegue pagar seus credores ela pode pedir a autofalência ou, mais normalmente, seus credores concursais podem fazer esse pedido e isso é apreciado pelo juiz que preside o processo de recuperação.

O juiz conhecendo pela quebra nasce uma falência que nada mais é que uma nova “pessoa” que agrega todos os bens e direitos da empresa falida e todas as suas dívidas, é nomeado um Administrador Judicial – AJ – (um assistente do juiz) para arrecadar todos os bens e direitos, elaborar a relação de quem tem a receber – o Quadro Geral de Credores – QGC – vender todos os bens e pagar todos os credores com o fruto das vendas e, se faltar dinheiro para quitar as dívidas, os credores perdem parte de seus créditos, se sobrar a empresa falida recebe o “troco”, parece simples na teoria!

Apesar da falência ser uma possibilidade legal que em teoria beneficia os credores pois abreviaria o “sofrimento” e aceleraria o pagamento máximo possível além do fato de, novamente em teoria, a falência prejudicar enormemente a empresa e o empresário uma vez que com a quebra é nomeado o dito AJ para liquidar todo o patrimônio, pagar o que for possível para os credores e se for o caso (imensamente raro) devolver o troco para o empresário, em suma, tudo vai para os credores até satisfazê-los, porque os credores têm mais medo da falência que o próprio devedor?

A resposta dessa intrigante questão pode estar na manifestação recente do decano do Tribunal de Justiça de Mato Grosso – TJMT – desembargador Orlando Perri, quando, em recente sessão, qualificou o maior, mais emblemático e controverso caso falimentar daquele tribunal de “vergonhoso”.

Para se entender esse receio do credor com a falência podemos usar como exemplo este “vergonhoso” caso nacionalmente conhecido. A Olvepar S.A. – acróstico para Óleos Vegetais do Paraná – Uma empresa paranaense, com atuação em Santa Catarina, que migrou sua sede para o estado de Mato Grosso nos anos de 1980 e se consolidou, há época, como a maior trading company nacional de soja, e que movimentava milhões de dólares de soja e seus derivados para o exterior, atendia mais de 5.000 produtores (mais de 2.000 produtores ficaram credores da falência e estão listados no QGC além de outros 500 que ficaram devendo para a falida e seguem sendo executados). 

A Olvepar também atuava com troca de insumos por soja e milho, produzia sementes, enfim, atuava em toda a cadeia do agronegócio. No final dos anos de 1990 a Olvepar, por conta dos planos econômicos e com a grande crise do agronegócio da época, também entrou em crise, começou a ter dificuldades de honrar seus compromissos e em julho de 2000 fez um pedido de socorro judicial, a Concordata Preventiva (seria o equivalente hoje a uma RJ), iniciava aí o processo que o ilustre desembargador tratou de “vergonhoso”. Sem sucesso aparente de se reerguer, em agosto de 2002, a justiça do estado de Mato Grosso decretava a falência da Olvepar.

Depois de 23 anos, de ter arrecadado centenas de milhões de reais em suas contas através de recebimentos de créditos, de venda de ativos e de recebimento de aluguéis, até hoje, nenhum credor do QGC recebeu absolutamente nenhum real.

Atualmente o processo principal tem aproximadamente  50.000 páginas além de existir inúmeros processos secundários (incidentes, apensos e recursos) que somam outras dezenas de milhares de páginas. Tudo em um grande emaranhado jurídico, envolto em escândalos, pagamentos multimilionários de advogados, peritos, síndicos e outros tantos milhões em despesas para manter esse processo e seus atores em funcionamento.

Os números dessa falência ajudam a entender esse dilema entre credores, devedores e justiça. Na época da quebra, segundo um dos 7 AJ's  que passaram por esse processo e que já custaram mais de R$ 6 milhões de reais aos credores, especificamente o penúltimo,  – Trust Serviços Administrativos Eireli – a dívida total da falida, na data da quebra, era de aproximadamente R$ 200 milhões de reais distribuída em mais de 2.500 credores, dentre eles mais de 100 trabalhadores que possuíam aproximadamente R$ 6 milhões de reais em créditos trabalhistas. A dívida da falida foi apresentada pela Trust e homologada pela justiça em julho de 2019 não existindo qualquer questionamento judicial sobre essas dívidas que atingem atualmente uma cifra que estima se ultrapassar 1 bilhão de reais devido a juros e correções. 

Uma das mais recentes perícias, entre tantas outras que já consumiram mais de R$ 8 milhões de reais dos recursos da falência, periciou justamente os gastos dos síndicos no decorrer das últimas duas décadas do processo, a perita Silvia Mara Leite Cavalcante juntou no processo relatórios onde se pode averiguar por exemplo que desde a sua quebra em 2002, já foi gasto aproximadamente R$ 180 milhões de reais, valor que daria para praticamente quitar o capital de toda a dívida declarada inicialmente pela falida mas nenhum centavo deste montante foi destinado aos credores do QGC, essa fortuna, em grandes números foi destinada a pagamento de advogados R$ 70 milhões de reais, tributos R$ 25 milhões, credores que a justiça atestou que não se sujeitam aos efeitos da falência R$ 45 milhões. Além dos gastos citados anteriormente gastou-se também com síndicos mais de R$ 6 milhões, o atual, sem que tenha nenhum novo trabalho prestado, já recebeu mais de R$ 1 milhão, as despesas com os síndicos devem ser somadas a outras dezenas de milhões despesas gerais como viagens, refeições, funcionários que trabalham para os síndicos. Alguns gastos realmente extravagantes como viagens para cidades litorâneas, bebidas alcoólicas e jantares em inúmeros restaurantes.

Mesmo que o processo se encerrasse agora as despesas ainda não estariam satisfeitas, os credores ainda teriam que esperar o pagamento de mais algumas dezenas de milhões ao fisco, mais algumas dezenas de milhões para advogados contratados pelo juízo além dos costumeiros prêmios milionários pagos para os AJ’s pelo encerramento.

O montante pago pela falência da Olvepar aos síndicos e peritos é múltiplas vezes superior ao devido originalmente para a centena de trabalhadores da época da quebra e que até a presente data nunca receberam nada. Para se dar uma dimensão destes gastos o síndico recebe atualmente R$ 60 mil reais por mês, cifra superior à de presidentes de empresas que atuam efetivamente no mercado, além de contar com contadores, advogados outras dezenas de assistentes, até pareceristas que cobraram centenas de milhares de reais para dar uma simples opinião, como é o caso do juiz aposentado Marcelo Sacramone que deu sua opinião ao síndico sobre a tentativa dos credores em encerrar esse processo, tudo pago pela massa falida, ou seja, pelos credores e devedor. 

Na contramão dos gastos da massa falida caminha os bens e direitos que com o passar do tempo se deterioram, sofrem depredação, se tornam obsoletos ou de difícil reparação, ou seja, por um lado se consumiu e segue se consumindo muitos recursos e por outro lado, até mesmo pela falta de zelo, se perde patrimônio, é uma conta de perde/perde para os reais detentores de direitos e obrigações: credores e devedores.

Inúmeros são os exemplos da perda de patrimônio e consequente perda de capacidade de pagamento nesse emblemático caso, mas o mais impactante são o processo de retomada do imóvel mais valioso da massa falida em Mato Grosso, a esmagadora de grãos localizada no distrito industrial de Cuiabá, que o Estado de Mato Grosso tentou retomar por conta do abandono e desuso superior há 10 anos e que foi impedido graças a um contrato de arrendamento assinado pelo síndico com uma empresa do setor e que possibilitou reativar a indústria e, outro exemplo, é a do processo similar, de desapropriação movida pela prefeitura de Clevelândia/PR do imóvel mais valioso no estado do Paraná e que está sendo julgado no agravo em que o esclarecido desembargador Perri chamou o caso de “vergonhoso”. 

Perder esses dois imóveis seria o equivalente a perder mais de 25% de todos os imóveis da massa falida, isso sem contar que a grande maioria dos demais imóveis encontram-se invadidos, ocupados e totalmente abandonados, alguns totalmente destruídos por vandalismos, outros já ocupados e edificados por estranhos sem que nenhuma medida seja tomada pelo síndico.

O fato de os bens envolvidos em uma falência estarem, por essência, envolvidos em processos judiciais, disputas e inúmeros outros problemas agravados pelo abandono, falta de manutenção e cuidados ainda faz com que sistematicamente sejam vendidos em leilões onde os compradores pagam muito menos do que os valores avaliados e em alguns casos não se consegue se quer uma única proposta. Se amontoam os casos em que os leilões não recebem nenhuma proposta e quando recebem geralmente acontecem por uma fração ínfima do valor que esses bens atingiram em um mercado regular e fora de um processo judicial. 

Recentemente houve tentativas de vendas de bens de outras falências relevantes no estado de Mato Grosso como da Trese Construtora e do Modelo Supermercado e ambos os leilões as vendas foram por valores muito inferiores aos avaliados, no caso do Modelo alguns bens foram vendidos por menos de 20% da avaliação. Vendas essa que foram avalizadas e comemoradas pelo judiciário e pelo Ministério Público e que serviram para pagar de forma parcial poucos trabalhadores sem que restasse um único centavo para os demais credores, tudo isso vastamente coberto pela mídia.

Muito além das questões econômicas como gastos do processo; perda de valor dos bens; e baixíssimos valores arrecadados nos leilões existe ainda um outro imenso problema que assusta os credores, o tempo que a justiça leva para dar fim a alguns processos falimentares, alguns casos ultrapassam em muito as décadas. Além da Olvepar que já se arrasta a quase 23 anos o estado de Mato Grosso possui inúmeros exemplos de grandes casos e com tramitação longa, tais como: Cotton King (10 anos); Treze Construtora (25 anos); Álcool do Pantanal (14 anos); Modelo Supermercados (10 anos).

Por essas falências já passaram inúmeros síndicos (quase sempre os mesmos que se sucedem e repetem), onde todos receberam e seguem recebendo seus honorários religiosamente em dia, mais os prêmios finais que sempre estão na casa dos milhões. Muitas falências têm seu patrimônio de tal forma dilapidado pelos gastos excessivos desses processos, pela demora, pela inércia e pela dissidia que se quer restam recursos para que se possa seguir pagando até mesmo o próprio síndico ou um advogado, criando nestes casos verdadeiros pesos mortos, estorvos ao judiciário e a população e frustrando completamente os credores e devedores.

Fato é que com o passar dos anos, com o passar dos síndicos, dos juízes e de todos os atores envolvidos, os credores seguem sem nenhuma perspectiva de recebimento, os bens, quando existem, não geram frutos, não empregam, não servem ao que se presta, e, os devedores seguem a margem da sociedade, muitas vezes impedidos se seguirem suas vidas, de operarem de se reerguerem, a falência é quase uma pena de morte social.

No caso em exemplo, a Olvepar, já se passaram 7 síndicos sendo que 99% dos atos relevantes do processo foram desenvolvidos na gestão do penúltimo – Trust – e que foi substituído pelo atual que herdou um processo com pedido de encerramento proposto pelos credores há mais de 18 meses atrás e até o momento não foi apreciado ou teve qualquer andamento, neste período a massa já gastou mais de R$ 1 milhão com salário do síndico e outra quantia equivalente com advogados e peritos sem contar as dezenas de assessores pagos pela massa a serviço do síndico.

A falência da Olvepar, na gestão da Trust teve: apresentação do Quadro Geral de Credores e a solução de todas as controvérsias sobre ele; arrecadação de todos os bens da massa falida; avaliação de todos os bens da Massa Falida; recuperação dos maiores valores de recebíveis; revitalização e reativação das duas indústrias de esmagamento de soja sendo estes os dois bens valiosos da massa.

O processo falimentar da Olvepar já contou com 4 magistrados que de fato ficaram à frente do processo sendo a atual magistrada, a juíza Anglisey Solivan de Oliveira o juiz que a mais tempo está a frente do processo, os últimos 7 anos, mais que o dobro do tempo de seu antecessor, o juiz Flavio Miraglia Fernandes.

Como ponto final, como se os anteriores não fossem suficientes, não se pode esquecer de todos os escândalos que sempre estiveram envolvidos nos processos falimentares, a própria Olvepar segue sendo um ótimo exemplo. Processos que duram décadas, que juízes, síndicos, peritos e advogados se repetem ao longo de anos, que se pode contratar inúmeros advogados e peritos, que os honorários estão sempre na cifra de milhões tendem, são pratos cheios, para desmandos e benesses aos amigos do rei. Não deve ser por outro motivo que as nomeações e contratações de síndicos, advogados e peritos estão sempre nas manchetes e os nomes muitas vezes são os mesmos. 

Em um cenário onde pouquíssimos trabalhadores aguardam décadas para receber rateios simbólicos e os demais credores costumeiramente aguardam décadas, gastam com advogados e percebem que não tem qualquer voz no processo, que seus direitos são decididos pelo sistema judiciário, que terceiros decidem o direito alheio é fácil entender por que a falência é evitada pelos credores, é temida. Citando Rui Barbosa “Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, frase que tem 102 anos, menos de 4 vezes a idade de algumas das falências aqui citadas 

Não poderia o ilustre decano ter adjetivado melhor o processo falimentar da empresa Olvepar S.A. é muito mais do que emblemático, o contexto deste processo, que se repete em tantos outros, sem sombra de dúvidas é o motivo principal de credores e empresários temerem tanto um procedimento falimentar, é um processo “vergonhoso”.


Pedro Henrique de Souza é advogado sócio-fundador do escritório De Macedo Buzzi & Souza. É responsável pela gestão de contratos e relacionamentos
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