Olhar Direto

Domingo, 05 de maio de 2024

Opinião

Estado Democrático de Direito sob ataque! Os males do prestígio ao punitivismo estatal desenfreado em detrimento à atividade contramajoritária da advocacia.

A questão proposta pelo poeta romano Décimo Juvenal, acima transcrita, suscita discussão de importância basilar. Em que pese haver sido concebida em contexto específico, e ligeiramente dissociado de sua majoritária aplicação contemporânea, a premissa estabelecida pelo poeta, se presta a demonstrar a necessidade de que haja uma sistemática sólida, a fim de estabelecer a medida exata, dentro da qual uma figura investida de poder estatal (custodes), possa exercê-lo, pautando-se em limites claros que impeçam a ocorrência de abusos, excessos e violações.
 
Traçadas estas fronteiras, há ainda que existir mecanismos efetivos, mediante os quais se possa fazer observar os limites impostos, de maneira que se obtenha eficácia, e como será demonstrado, aqui tem residido o lugar da advocacia no cenário que atualmente figura o sistema jurídico brasileiro, ou nas palavras do eminente advogado, que apesar de já falecido tem sua proposição até hoje ecoada, Dr. Luiz Carlos Sigmaringa Seixas[i] “A advocacia é o confronto direto entre a civilidade e o arbítrio”.
 
Aos limites impostos denomina-se Estado Democrático de Direito, que se consubstancia num conjunto de normas que subordina a todos independentemente da fortuna, status quo[ii], ou poderio, conglomerado de regras este, composto pela Constituição da República, leis e atos normativos.
 
Parafraseando o poeta romano, por “vigilante” ter-se-ia todo àquele incumbido de zelar pela observância destas normas anteriormente mencionadas, seja o aparato policial, ou mesmo os Juízes, Tribunais e membros do Ministério Público; por “vigia do vigilante” designa-se todo àquele que exerce o papel contra majoritário de fazer com que este denominado “vigilante”, não ultrapasse a medida exata do exercício de suas prerrogativas e, caso venha a fazê-lo, que sofra igualmente aos demais cidadãos as reprimendas da lei; imperioso dizer que, no estado de coisas por ocasião da atual conjuntura brasileira, este relevantíssimo papel, como retromencionado, tem cabido à advocacia, ou mesmo, e em certo grau, à imprensa séria, ponderada e criteriosa, ou alguns partidos políticos e instituições da sociedade civil.
 
Imperioso registrar que, em que pese a impopularidade do raciocínio aqui intentado, nestes tempos obscuros, fruto do recrudescimento sintomático dos valores democráticos e republicanos, tal exegese se apresenta dotada do caráter de imprescindibilidade, diante da maré montante de autoritarismo que se hospeda em determinados setores da burocracia estável do Estado, bem como, no senso comum da nação.
 
Hodiernamente, diversos fenômenos eclodiram, dentre os quais se destacam o deslinde do monumental esquema de corrupção pela operação lava-jato, a polarização do espectro político e a conjuntura única das eleições gerais de 2018, diretamente afetada pelos eventos retromencionados, conjunto de elementos sintomáticos que, quando congregados, se prestaram a despertar revoltosos sentimentos na massa da população brasileira.
 
Somando-se a estes, tem-se a problemática das mídias sociais e a disseminação em massa de notícias de cunho sensacionalista e, não raras vezes falso, as famigeradas fake News[iii], fomentadas com objetivos espúrios, servindo a propósitos calcados na desinformação e manipulação do imaginário íntimo da população.
 
Sob a influência imediata deste contexto, questões relativas às minúcias da persecução penal, passaram a compor diariamente o imaginário da população, ante a sua complexidade ímpar, anteriormente discutia-se tais demandas apenas no interior dos tribunais e nos autos dos processos, referida mudança calhou após talvez certa banalização midiática acerca do tema, ou consequência direta do advento de novas ferramentas de propagação de informações, ou mesmo da necessidade cada vez crescente do cidadão em constantemente consumir informações, e se sentir incluído no debate público acerca dos mais variados temas.
 
Neste cenário, passou-se a submeter diariamente, e sem a devida cautela, de maneira por vezes rasa, a marcha processual de feitos em curso, ao escrutínio do homem médio, desprovido do arcabouço jurídico imprescindível para análises precisas e acertadas, em situações que frequentemente envolvem conhecidos nomes do cenário político e empresarial, causando então outro efeito ainda mais nocivo ao Estado de Direito, qual seja, a afetação na condução das marchas processuais pela “voz revoltosa das ruas”.
 
Sendo imperioso registrar reconhecimento a importância do princípio da publicidade processual, insculpido nos Artigos 5º, inc. LX[iv] e 93, IX[v], ambos da Magna Carta, o que se combate aqui é o sensacionalismo que, por vezes alimenta embaraçosa controvérsia, inflamando os ânimos do cidadão comum quanto a questões acerca das quais não cabe opinião, devendo incidir apenas o império objetivo da lei, contribuindo portanto, através da efervescência do debate público, para influenciar a liberdade de decisão dos julgadores, o que é grave,  haja vista que ao tribunal não é dado ouvir a voz das ruas, tal função cabe ao parlamento, entretanto o julgador, ser humano que é, pode se ver afetado pelo clamor altissonante do povo.
 
Fenômeno complexo este, que contribuiu e continua a contribuir para a formação de um consenso inapelável pela necessidade de aplicação da lei penal a qualquer custo, um punitivismo exacerbado, ao passo que, se presta a construir e alimentar o estabelecimento da equivocada narrativa de que a advocacia, em razão do seu lugar de fala no processo, prestigia o acusado, sendo que a sublime função contra majoritária assumida pela advocacia, é a de defender garantias constitucionais e legais inerentes a todo e qualquer cidadão, assim como, zelar pelo Estado Democrático de Direito e resistir às investidas do autoritarismo.
           
De conhecimento comum que, o Estado de Direito é composto pelo sistema checks and balances[vi], no qual há inserto na própria estrutura estatal, mecanismos de controle intrínsecos, que se prestam a evitar excessos; em que pese a existência de tais mecanismos, em última ratio[vii] a militância pela observância das garantias no processo penal é exercida pela advocacia, que atua como o verdadeiro fiscal da lei no caso concreto, na luta pelas prerrogativas do cidadão.
 
O conspícuo filósofo grego Aristóteles, no exercício de sua precisa e distinta habilidade de articular raciocínios com brilhantismo, quando se pôs a documentar sua preciosa lição acerca da arte da Dialética, exposta através do tratado intitulado Órganon[viii], obra composta de seis trabalhos que se prestam ao complexo propósito de ensinar a habilidade de investigar raciocínios, em que as proposições se apoiam em opiniões comuns, a fim de aferir a sua validade, postulou ensinamentos de grande utilidade para análise do fenômeno em comento.
 
Calcado na lição aristotélica, de fácil demonstração os males inerentes a este raciocínio estamental de prestigiar o punitivismo estatal desenfreado, em detrimento às garantias constitucionais e legais, sob a alegação de perseguir a justiça, tendo em vista que, em que pese a ampla aceitação do raciocínio, possui premissa nociva e falaciosa, pois um processo punitivista e não garantista, se consubstancia numa injustiça de per si[ix].
 
Lamentavelmente, a grande maioria da população brasileira desconhece a ciência jurídica, o que desqualifica o consenso, todavia, ainda mais reprovável do que a ignorância da parte majoritária da população, é a voracidade inapelável com a qual certos formadores de opinião, lançando mão de repugnantes manipulações, incitam as paixões desta massa, desprovida do filtro necessário para julgar as intenções destes verdadeiros aviltadores da república e dos valores democráticos, que agem visando a obtenção de ganhos ocultos, sempre em desprestígio ao Estado de Direito e a Democracia.
 
O cerne da problemática apresentada, tem como causa e sintoma, num alarmante fenômeno retroalimentar, composto pelo fato de veículos de formação de opinião, tais como telejornais e programas difundidos pelas muitas plataformas de telecomunicação, quer seja as mais arcaicas como a televisão, ou mesmo as contemporâneas como youtube, twitch e congêneres, compor os seus quadros profissionais desprovidos, muitas vezes, da cautela, da responsabilidade, assim como, do arcabouço multidisciplinar basilar, imprescindível a formação do conhecimento apto à compor a ótica adequada para o bom julgamento das complexas questões, discutidas no âmago destas persecuções penais de grande repercussão.
 
Sem mencionar que, nos dias atuais, qualquer cidadão interessado tem a possibilidade de se tornar um digital influencer[x], possuindo voz para falar a milhões sem muita limitação mediante plataformas como o Facebook, Instagram ou Twitter, o que em nenhuma outra era foi possível, todos estes elementos, na atual conjuntura, se prestam muitas vezes, para a formação do equivocado senso comum pela condecoração ao punitivismo estatal indiscriminado, criando o sentimento de que observar e defender a adequada aplicação das normas constitucionais e legais, papel da advocacia criminal combativa, é prestigiar a impunidade.
 
Lançando resposta ao paralelo traçado com as palavras do poeta romano Décimo Juvenal, “quem há de vigiar os vigilantes”? Diz-se aqui que todo aquele cidadão que ama a democracia pode e deve “vigiar os vigilantes”, seja ele operador do direito ou não, desde que o faça investido da razão e crítica ponderada, pois a construção de uma sociedade sólida, madura, consciente e democrática, cabe aos amantes da democracia, que não se calam diante de ataques frutos de tempos obscuros, e em especial à advocacia cabe a função de velar, como fez noutros tempos difíceis, contra a mortificação das liberdades, tendo sempre em mente as palavras do eminente advogado e jurista brasileiro que aguerridamente lutou contra os excessos de seu tempo, o Dr. Heráclito Fontoura Sobral Pinto[xi], quando disse: “A advocacia não é profissão de covardes”.

[i] Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, (1944-2018), foi um advogado e político brasileiro.

[ii] Empregado na acepção de sinônimo dos termos prestígio, condição, renome.

[iii] Segundo Wikipédia trata-se de uma forma de imprensa marrom que consiste na distribuição deliberada de desinformação ou boatos via jornal impresso, televisão, rádio, ou ainda online, como nas mídias sociais. Este tipo de notícia é escrito e publicado com a intenção de enganar, a fim de se obter ganhos financeiros ou políticos, muitas vezes com manchetes sensacionalistas, exageradas ou evidentemente falsas para chamar a atenção.

[iv] Art. 5°, inciso LX, da Constituição Federal de 1988: A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.

[v] Art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988:  Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

[vi] Em tradução livre: Freios e contrapesos.

[vii] Em tradução livre: Último recurso.

[viii] Nome do tratado contendo o conjunto de obras aristotélicas compostas pelos livros: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos e Refutações Sofísticas.

[ix] Em tradução livre: “em si mesmo”, “por si mesmo”.

[x] Segundo Wikipedia: “Pessoas, personagens, marcas ou grupos que se popularizam em redes sociais como Facebook, Twitter, YouTube, Instagram e outras, gerando conteúdo, gerando um público massivo que acompanha cada uma de suas publicações e eventualmente compartilham com outras pessoas”;

[xi] Sobral Pinto, (1893 - 1991), foi um jurista brasileiro, ferrenho defensor dos direitos humanos, especialmente durante a ditadura do Estado Novo e a ditadura militar que foi instaurada após o golpe de 1964.

Jessé Moraes é Advogado, possui especialização em Direito Público, cursando atualmente Pós Graduação Lato Sensu em Direito Processual Penal.
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