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Domingo, 28 de abril de 2024

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A primeira vez de todas as coisas

O impacto inicial com uma nova experiência sempre gera uma reação espontânea, que exprime fascínio com um certo espanto. Tudo aquilo que ainda não foi experimentado, testado ou provado é capaz de despertar em nós sensações que ainda não conhecíamos, que permanecem adormecidas até serem ativadas por essa nova descoberta. E quando esse mecanismo é ativado, passamos a absorver as coisas e o mundo ao nosso redor de forma diferente. Às vezes de maneira mais complexa, às vezes apenas diferente.

As descobertas mais surpreendentes acontecem – em sua maioria – enquanto somos realmente jovens. Pequenos, de fato. Compreendemos um mundo novo todos os dias quando crianças, à medida que vamos adquirindo pequenas experiências, que nos ajudam a ampliar nossa visão da vida real. E isso é fascinante – o tal do primeiro contato. Como não há qualquer precedente, uma ideia do que a experiência ainda não vivida simboliza, as descobertas infantis são feitas em um nível de pureza encantador. Palpitações, olhos brilhantes, palmas das mãos suadas. Não me refiro ao amor. Refiro-me à primeira vez de todas as coisas.

Filmes com crianças tem essa responsabilidade um tanto pesada, de nos lembrar do por que delas serem tão fascinantes antes que cresçam e venham a se tornar “adultos” como nós. Atualmente, o cinema se perde nesta confusão, tentando trazer à luz um novo contexto infantil que carece de simplicidade e se perde na tecnologia avançada e na vontade quase consumada em crescer mais rápido. Mas, voltemos à primeira vez de todas as coisas. Os novos clássicos, título atribuído a filmes da década de 80 e até mesmo 90, souberam capturar esse elemento tão apaixonante da inocência de conhecer o novo, partindo de uma criança. Certa vez retratei Spielberg e sua habilidade em trabalhar com esse nicho em Os Goonies e volto mais uma vez, para dizer por que todos nós deveríamos voltar a 1982 e conversar com Elliot, de E.T. – O Extraterrestre.



E já que o assunto é A Primeira Vez, considero importante começar por mim. A primeira vez que assisti E.T. (quando criança) compreendi duas coisas: é importante guardar bem um segredo valioso e com o amigo certo, é possível voar de verdade. Nas vezes seguintes, esses dois elementos foram tomando novas formas, se aprimorando, crescendo e até se desfalecendo. Mas a primeira experiência é a que marca. É a que me trouxe aqui, é a que me fez compreender melhor outras coisas pela Primeira-Vez-de-Toda-As-Coisas de Elliot.

No clássico infantil E.T. – O Extraterrestre, o garotinho Elliot (Henry Thomas) se depara com uma criatura diferente de tudo já visto. Sua primeira vez começa ali, lidando com um ser que não é criança, tem tamanho de uma, mas pouco se expressa. A reação inicial é aquela dita no começo: fascínio + espanto. Passado o impacto inicial, hora de desconsiderar a estranheza e despertar a curiosidade. E ao longo do filme, Elliot é “enquadrado” em outras experiências iniciais, que se desenvolvem moldando a amizade peculiar, porém apaixonante entre uma pequena criança e um pequeno ser de figura franzina. Por isso, vamos fechar o cerco e colocar no mesmo patamar certas situações do filme que poderiam – facilmente – se encaixar na tabela da Primeira Vez.

Elliot se frustra pela primeira vez ao tentar convencer a mãe de que vira um E.T. Tradicionalmente, tudo não “passa de fruto da imaginação infantil”. Ele também lida com a dificuldade de se comunicar, mesmo sendo uma criança animada, naturalmente. Essa trava é desfeita, pela primeira vez, por conta da conexão intensa entre Elliot e E.T., algo também novo. E todas essas primeiras vezes despertam o sentimento de bravura, que o estimula a libertar todos os sapinhos que seriam dissecados na aula de biologia. Essa mesma experiência aflora a congruência entre a criança e o E.T., que transfere suas emoções absorvidas diante de um filme para o inconsciente de Elliot, que é levado a ter o seu primeiro beijo.

E assim, tantas outras novas experiências se abrem para o garotinho, à medida que sua irmãzinha Gertie (Drew Barrymore) e seu irmão mais velho Michael (Robert MacNaughton) adentram nessa história, descobrindo o mundo real pela perspectiva de um ser inacreditavelmente plausível. E a diferença entre a absorção adulta e infantil da história de E.T. traz um conceito bem atual da forma como várias gerações consomem as experiências que vivem. A mãe de Elliot não se convence da mirabolante história de seu filho, mas o pedido de socorro da criatura estranha leva o pequeno protagonista a se desafiar, buscando alguma forma de levá-lo de volta para casa. E quando este clímax se desenrola, os adultos tomam ciência da veracidade do “conto” de Elliot e a experiência vivida com o E.T. é completamente diferente. Tratado como um ser estranho, digno de análise e não de compaixão, os mais velhos não compreendem a pureza de viver algo pela primeira vez, sem qualquer carga pejorativa, malícia ou segundas intenções.

E talvez seja para evidenciar este abismo entre a mente infantil e adulta que Steven Spielberg optou por um estilo de gravação ousado. Além de priorizar a expressão das crianças mediante os conflitos do filme, o cineasta concentrou as tomadas dos adultos focando da cintura para baixo, escondendo suas expressões faciais, para evidenciar a certa irrelevância do pensamento adulto, mediante a inteligência infantil (poucos sabem, mas Harrison Ford interpreta o diretor da escola – papel que não possui um único close facial). Com exceção da mãe de Elliot – que representa o “cinismo” natural dessa geração, não há qualquer atenção especial a estes personagens.



De fato, todos ali tiveram – em sua primeira vez com o E.T. – a sensação imediata que mescla o fascínio com o espanto natural. Mas, contrariando o ímpeto de rejeição dos adultos, as crianças se abriram pra isso – inclusive os amigos de Michael, apresentados tardiamente. Enquanto os adultos demonstram certo ceticismo e repulsa por conta de sua bagagem de vida, as crianças se dispõem a isso. O novo lhes parece mais atraente do que para os mais velhos, justamente por não haver certos precedentes como mencionado logo acima; por não haver nada e nem ninguém que pudesse simbolizar negativamente o sentimento de conhecer uma criaturinha como aquela. E isso torna o desconhecido agradável para os menores, removendo abismos e criando proximidade com aquilo que nós – involuntariamente - apartaríamos.

A primeira vez de todas as coisas possui essa beleza emocional, onde o comum se torna extraordinário, o estranho em algo curioso e o impossível é apenas uma questão de opinião. Bem aventuradas são as crianças.

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