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Domingo, 28 de abril de 2024

Colunas

Entre gangues e rolezinhos

Nos últimos tempos era a conversa do país. Aquelas aglomerações de adolescentes que se encontravam em pontos estratégicos e iam em direção ao local onde emana o aroma do subúrbio e o consumo grita entre quiosques de doces, lojas e restaurantes espalhados em pontos específicos. O shopping era o destino final dessa galera. E não bastava ir em número pequeno, como quem se encontra com os amigos para uma tarde ou noite no cinema. Em se tratando do rolezinho, é fundamental seguir certos padrões. Para fazer parte do bando, é preciso mais que atitude. É preciso um estilo de vida.

Essa “nova” vertente abriu espaço para uma série de discussões de diversos aspectos: discriminação social e racial, falta de ambientes próprios para que os adolescentes possam desfrutar entre amigos e até mesmo questões de segurança. E no meio disso tudo estavam eles. Novos, com um código de conduta peculiar, atitude irreverente e código de vestimenta que define quem e o que cada um é. Dentro dessa confusão, onde a cada dia vemos as redes sociais como ponte de ligação entre acontecimentos, eventos e pessoas, está o resto da sociedade. Porcamente informada, confusa e segregadora. Que reluta, esconde e se esconde.

Mas nada disso é novo. Não me refiro às discussões, mas sim às conglomerações de pessoas, que tendem a ser unir por questões culturais ou sociais. Aqueles grupos formados por membros que partilham do mesmo ponto de vista, mesma opinião política, mesmo gosto musical e até mesma localização territorial. E é natural do ser humano se associar a outros. Isso é a vida em sociedade. E como sou adepta da premissa que cinema e mundo estão, intrinsecamente, conectados, observo os rolezinhos como uma extensão de algo muito mais amplo. Seu propósito é completamente diferente, mas a discussão de “qual o seu lugar no mundo” facilmente nos remete a The Warriors – Os Selvagens da Noite.

Dirigido por Walter Hill, Warriors encerra a década de 70 nos mostrando que certos resquícios dela ainda perdurariam nos anos 80. Embora o mundo estivesse entrando em uma reconfiguração que criaria um certo abismo entre as duas décadas, Os Selvagens da Noite traz a luz um assunto muito vivido nas ruas de Nova York e pouco discutindo (na época) em voz alta: a supremacia das gangues dos bairros e regiões periféricas.



Em uma Nova York onde, até 1979, havia mais de 100 gangues de rua espalhadas pelas esquinas, a vida em sociedade ganhou um significado sombrio. Embora não houvesse a ditadura do toque de recolher e a reclusão obrigatória, essas coisas – com as quais nos acostumamos no mesmo período durante a Ditadura Militar – foram naturalmente adotadas pela população local, que sentia a opressão das gangues, que protegia e atormentava os moradores de seus bairros.

Em Warriors, tudo começa inofensivamente. O líder supremo da gangue mais poderosa de Nova York monta uma “conferência”, onde pretende aparar as arestas com as demais gangues. Para que a reunião seja pacífica, todos os grupos espalhados por toda a cidade devem comparecer desarmados, dispostos a dialogar. Propondo uma cooperação entre gangues, Cyrus discursa calorosamente sobre a importância em trabalhar juntos, manter a cidade em paz e sobre como a força dos grupos seria muito maior quando canalizada e unida de forma ordenada.

A sua ideia acaba tendo o efeito reverso, gerando uma perseguição por parte de todas as gangues da cidade em busca da gangue responsável pelo assassinato à queima roupa de Cyrus. O filme é um clássico cult, já possui mais de 30 anos, mas qualquer outro spoiler é desnecessário. É preciso sentir a tensão do filme, que traz para as telas a sensação terrível de hostilidade e opressão que todos, membros de gangue, grupos de rolezinho ou não, já sofreram.

Além de nos levar a uma deliciosa viagem ao tempo, mostrando com crueza a falta de controle da prefeitura de Nova York sobre a cidade, a longa e interminável trajetória da gangue Warriors até Coney Island (seu território seguro) nos transporta para as estações de metrô sujas e pichadas, que fedem a suor e são abandonadas pelo poder público. A anarquia toma conta das noites escuras e as gangues se transformam em policiais civis, que – à medida que protegem seus conterrâneos – os assustam com sua brutalidade.



O filme também traz discussões pertinentes, que ultrapassam o poder abusivo das gangues e nos levam para aspectos sociais. Os mesmos participantes opressores são vítimas de um sistema opressor falido, onde o governo era incapaz de lidar com a situação das regiões periféricas e não sabia como iniciar políticas públicas de inclusão. As gangues são frutos dessa ausência de apoio a núcleos pobres e sem espaço na sociedade. Para eles, a saída era exercer a mesma imposição feita sobre eles. A polícia cedeu, assim como a prefeitura. Mas no final dos anos 80, quando uma revitalização da cidade passa a ser instaurada pouco a pouco, Nova York descobre que as gangues só existiam por falta de investimento no cidadão. Que elas oprimiam, mas puramente porque assim foram ensinadas.

Ainda não vemos essa transformação no Brasil. E talvez seja justamente por essa falta de compreensão e atitude que vivemos em um país onde os pobres são marginalizados e grupos são proibidos de transitar juntos em locais fechados. Mais um ciclo de violência se repete.

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