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Domingo, 28 de abril de 2024

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Nós homens-de-papéis e nossa mutilada existência

Arquivo Pessoal

Para vir ao mundo tive que ser agendado. Afinal, não nasci de parto normal. Quando criança para um filho educado, fui colocado dentro de uma escola. Agendaram para mim um período. Minhas datas, meus trabalhos, as provas e meus horários. Acostumei-me aos calendários desde cedo. Quando adulto, no trabalho, meus horários, meus trabalhos e seus prazos. Já estava acostumado com os ponteiros e os apitos e sirenes de fábricas.

Dos tantos papéis que representamos na vida aos quantos papéis que apresentamos em vida. Meus papéis... Nossos papéis...

Já fiz diários e me cansei. Passei a escrever semanários e, também me cansei. Meus mensários e anuários, também me cansaram. Se de tudo daquilo que escrevo de mim me cansa. Como não cansar de tudo que me escrevem? Em ditarem as horas de meu dia. Os dias de meus meses e os meses de meu ano. Em catalogar minha vida em calendários e reparti-la em horários.

Nos “meus”, nos “seus”, nos “nossos” e nos “vossos” compromissos. Tenho compromissos? Ou são eles que me têm?

“Eu” e “meu”, parecem coisas minhas. Mas não são!
Afinal, eu e meu no tempo, não somos! Não nos pertencemos. Sempre somos dos outros.

Em meu Tempo? Não tenho eu.
Em meu Eu? Não tenho tempo.
Tempo, sem eu!
Um eu, sem tempo!

O que sou além de um homem desagendado? Hoje acordei com desejo de agendar-me. Agendar-me para ter um tempinho para mim mesmo. Essa vontade de agenda é coisa das boas! É claro, desde que tenhamos espaço na agenda dos outros. É triste, mas é o espaço da agenda dos outros é que sempre permite o nosso espaço. Assim, venho desejando jogar fora meus agendamentos. Queimar meus prazos! Insanidade essa que me custará reescrevê-los.

Prazos, datas e horários! Sou um número a ser pesado, medido e avaliado. Ouço-me de muitas formas: ouço alguém dentro de mim. Ouço alguém fora de mim. E quase sempre, acho que nem ouço!

Com minha vida datada. Bastei nascer e comecei a morrer. Sigo meus prazos. Prazo até rima com prazer! Mas o certo é que um dia hei de morrer... A “minha” morte foi agendada! Pois dizem que pra Deus, “ninguém morre na véspera”. Depois de morrer, meu corpo irá para cova descansar. Até que seu prazo decomposto venha findar. Afinal, prazo é prazo!

Percebi, da vida que vivi e do bem pouco que já li. Do nada que vivi e do muito que dormi
Ela é mesmo muito curta! Melhor seria se de trinta e seis horas fosse meu dia. Nessa vida, não se faz todas as coisas. Não se gosta todos os gostos. Não se vê todos os rostos. Não se dorme todos os sonos. Não se viaja todos os lugares. Não se degusta todos os pratos. Não se banha todos os rios. Não se ri todos os risos. Não se lê todos os livros. Não raras vezes dentro de bibliotecas sinto a frustração de ser um só. Um que nem por três vidas leria o que gostaria. Não raras vezes diante de tantas outras coisas, queremos todos os gostos, viver todos os rostos, dormir todas as camas, degustar sobre todos os pratos e rir todos os risos.

Isso tudo sim faria mais eterna (...) essa nossa mutilada existência.

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco.

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