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Domingo, 28 de abril de 2024

Colunas

Uma história sobre um trabalho mecânico e um pequeno descuido

Arquivo Pessoal

Moacir não era do tipo de pessoa que costumava errar no trabalho que fazia – pelo contrário, sua preocupação em estar sempre certo em sua função o fazia um dos funcionários mais valiosos para a pequena fábrica, e ele sabia disso. Metódico, acordava cedo, tomava café da manhã e vestia-se em seu uniforme azul sob a pontualidade dos segundos, fazendo-o com a satisfação de ver um novo dia ensolarado erguer-se pela janela afora. Sua esposa, Luísa, ajudava-o em casa, mas também vestia seu uniforme de funcionária exemplar, despedindo-se de seu marido ao início da sétima hora da manhã.

O trabalho de Moacir não era exatamente complicado, mas era necessária alguma atenção contínua. Na fábrica, enquanto uma esteira à sua frente trazia peças de ferro de formato aleatoriamente igual, seus olhos deveriam procurar por defeitos em curvas quase inexistentes; olhar diâmetro dos buracos onde, pensava, iriam parafusos posteriormente; analisar se era possível ver alguma saliência na borda inferior da lateral direita do objeto esquisito. E tudo isso o mais rápido possível, para poder analisar a próxima peça que viria de forma despreocupada.

Enquanto observava as peças que iam passando devagar, notou na esteira um espaço vazio, onde era para estar uma das esquisitas peças. Nunca havia acontecido antes, uma peça sumir, e ele já as via há três anos. Ficou a olhar para o espaço vazio, como se procurasse por imperfeições em um fantasma conhecido, e começou a andar junto da esteira, intrigado, curioso. Onde estaria aquela peça?

O vazio entrou por um buraco na parede, onde Moacir não mais o pôde ver. Além dele, mais três peças foram junto, sem que percebesse.

Retornou ao seu posto, onde a vida continuou em ritmo constante.

Devido ao descuido do homem mais perfeccionista possível, uma das peças passou com uma pequena saliência na borda inferior da lateral direita. Ninguém da fábrica seria capaz de dizer o que aquilo iria significar, nem mesmo a pessoa que desenhou a peça, pois não sabia o que o outro engenheiro havia pensado para o que isso serviria – e nem mesmo este saberia, pois, embora soubesse o encaixe, não sabia a função, que era cargo de um terceiro engenheiro. Por outras mãos a peça ainda passou, sendo pintada, ajustada, encaixada, testada. O resultado final, diziam os funcionários do final da esteira, era uma “bicicleta com motor”, uma bicicleta que dispensava a força humana para ter velocidade.

Infelizmente, ninguém sabia que, na bicicleta 483b87h, o motor tinha uma saliência em uma pequena peça que era responsável por girar e impulsionar a bicicleta para a frente. Ela foi colocada à venda, e não muito tempo depois um jovem rapaz, Caxias, comprou-a, satisfeito, embora tenha pago uma quantia significativamente grande. Andou quatrocentos metros, até que uma fumaça negra surgiu, o motor parou de funcionar, e a bicicleta foi em direção a um poste, onde Caxias bateria de frente a trinta quilômetros por hora.

E bateu. O acidente causou-lhe duas fraturas e vários meses de recuperação, além de um processo judicial contra a pequena empresa para que Moacir trabalhava. A ação judicial resultou em indenização exorbitante, financeiramente obrigando a empresa a demitir alguns funcionários para equilibrar o orçamento, além de reduzir a quantidade de peças, resultando em mais espaços vazios na esteira e maior inquietude de Moacir. Inevitavelmente, alguns dias depois ele fora demitido.

Luísa agora trabalhava o dobro para poder pagar as contas; Moacir não saía de casa a fim de procurar fantasmas de peças atrás do sofá; e Caxias pensava em como nunca mais iria comprar uma bicicleta com motor.

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