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Segunda-feira, 29 de abril de 2024

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A meretriz, o mendigo e a felicidade comum

Arquivo pessoal

Entre uma meretriz e um mendigo existem óbvias distinções que não serão discutidas neste texto, ao menos por enquanto. O que trago à pauta é a sarjeta comum imposta, direta ou indiretamente, pelos tão prezados valores da sociedade. Se trago a sarjeta à pauta, também faço o contrário: levo para a sarjeta a própria pauta do debate. Todavia a ideia não é, de toda, minha, é muito mais da alemã Doris Dörrie, em seu filme Glück (Felicidade, 2013). Onde mais se encontrariam a meretriz e o mendigo, se não na sarjeta, na esquina da rua seguinte, na latrina a céu aberto?

Irina (Alba Rohrwacher) chega a Berlim fugindo da Guerra dos Balcâs, na Macedônia, foge também, do estupro e da morte de seus pais pelas mãos de soldados. Sem documentos, tem na prostituição única forma possível de sobreviver. Já Kalle (Vinzenz Kiefer) é um punk que dorme nas calçadas com Byron, seu cachorro. Pede “trocadinhos” na rua para comprar cerveja e, vez ou outra, comete alguns atos de transgressão da ordem.

De inicio a relação é truncada, mas logo ambos veem um no outro o cúmplice que, sem saber, lhes faltavam. Vão morar juntos, ela em seu ofício e ele na tentativa de entregar jornais. Os conflitos nessa relação são facilmente imagináveis.

A linguagem de Dörrie é narrativa, em detrimento do experimental. Apesar dessa opção, não se justificam alguns maneirismos quanto à direção: como o momento em que o cachorro atravessa a rua em câmera lenta – temos a certeza de que será atropelado antes que seja de fato atropelado. No roteiro, o clichê são as sequências contemplativas de Irina em seu país de origem, embora a música clássica como trilha sonora agregue muito à narrativa. E se no campo, soam as composições eruditas, em Berlim, prevalece o punk que imputam mais comédia do que revolta, mas ainda faz presente o caráter marginal da música.

A obra também traz a presença, de forma agradável e, paradoxalmente superlativa, do minimalismo nas ações: mais até dos atores do que da câmera. O gestual retoma algo do padrão de interpretação brechtiano que implica em gestos significativos, embora sejam sutis neste filme, uma adequação que atende a distinção básica entre as linguagens do teatro e do cinema. Assim Dörrie propõe uma metáfora onde desmistifica a felicidade magna dando aos nossos olhos uma felicidade comum.

Se não fosse sua eficaz inserção do macabro, e “mui” importante inserção, a produção alemã soaria doce de mais para um diabético. Entretanto, Glück (Felicidade) é singelo o suficiente para sustentar que existe um momento, como afirma Kalle, quando o balanço chega ao ponto mais alto, em que se pode ser feliz. Um bolo de aniversário, um cobertor, um orgasmo, pão com mel, flores roubadas... Sentimento que pouco, ou nada, tem a ver com aquela felicidade plena do anuncio de margarina. E esta, nem o mendigo nem a meretriz esperavam alcançar.

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