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Domingo, 28 de abril de 2024

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Dos corredores da escola à loja de discos

Arquivo Pessoal

Hoje em dia parece que há uma certa necessidade muito maior em injetar adrenalina nos filmes. Não me refiro àqueles repletos de cenas de ação, explosões, corridas alucinadas pela vida ou coisas do gênero. Este tipo de adrenalina faz parte da arte de fazer filmes há muitos anos. Mas existe outro tipo. Uma espécie de adrenalina mental, onde o nosso cérebro se vê quase forçado a processar inúmeros acontecimentos em rápidos cortes de cenas. Essa adrenalina que quase não digere, de cara, todo o frenetismo que passa diante dos nossos olhos durante um filme. Não que isso seja ruim; pelo contrário. Quando essa complexidade é bem desenvolvida, somos levados a um novo nível, a um estado sublime, onde nossa mente explode com a eclosão de fatos e plot twists.

Mas hoje isso é quase uma necessidade nos filmes. Aparentemente, é muito delicado capturar a atenção do espectador com histórias mais simples e bem contadas. Isso não parece funcionar como antigamente e acabamos nos vendo como receptores de um grande bolo de chocolate com três camadas, daqueles que só o gordinho do clássico Matilda consegue digerir com facilidade. Enquanto os filmes dos anos 2000 em diante nos surpreendem com muita informação simultaneamente, os clássicos da década de 80 se mantém simples, com histórias do dia-a-dia e aquela cereja do bolo: trilhas sonoras emblemáticas.

Muitos dos novos clássicos que temos nos anos 80 possuem pelo menos um aspecto em comum: música de boa qualidade. Já falamos aqui do quanto o cinema deste período sofre influências de todos os tipos e se torna um grande influenciador para o que vemos hoje. São filmes cheios de referências recém-criadas que hoje são reproduzidas por tudo que vemos na cultura POP. Sejam citações, expressões, linhas de argumentação ou estilo, os filmes dos anos 80 lançaram uma tendência universal que permeia o básico com aquilo que mais amamos no cinema: canções memoráveis.

E isso é suficiente nas mãos do cineasta John Hughes. Lhe conte uma simples história frustrante das dificuldades em ser adolescente no meio escolar e ele transformará lágrimas e ouro. E se na nossa vida todos deveríamos ter uma trilha sonora particular que acompanhe os fatos do dia-a-dia, que ela simbolize muito mais que um som de acompanhamento. Que revele, em melodias, a fragilidade, ambições, frustrações e sonhos que qualquer um de nós temos durante a fase mais exaustiva da vida.

Por ai temos a simplicidade de fazer bons filmes usando todos os ingredientes disponíveis: histórias reais, dramas simples, estilos que remetam diretamente ao que a cultura POP simboliza e músicas especificamente escolhidas para cada ocasião. Tudo isso é encontrado nas ruas, nos corredores da escola, nas lojas de discos e em A Garota de Rosa Shocking.

O clássico de 1986 não poderia ser mais simples: uma garota sem uma beleza estonteante, de formação simples e ignorada na escola quer ir ao baile da escolar, mas não possui dinheiro suficiente para o vestido ideal e – mais importante – não possui um par. Dizer mais do que isso a respeito da temática do filme seria reinventá-lo a partir de qualquer outra perspectiva que não existe. A história do filme é essa. Mas como é possível um filme tão simples como esse ser uma das maiores referências POP e cult mesmo após 28 anos de seu lançamento?

Essa pergunta é tão fácil de ser respondida que chega quase a ser complexa. Andie Walsh (Molly Ringwald) é uma bolsista de um ótimo colégio, onde a maioria de seus alunos pertence à nata da sociedade estudantil e local. Ela é pobre, tal como o seu melhor amigo, o inveterado apaixonado Duckie (John Cryer), se sente deslocada no ambiente escolar, desconfortável consigo mesma e com seu corpo. Faz parte da galera indie, que se reúne em uma área específica da escola onde o cult reina: óculos exóticos e modernos, jeans de cós alto rasgados, cortes de cabelo que fogem à regra dos estudantes mais “conservadores” e riquinhos, walkman coloridos com canções atípicas para os mesmos conservadores.

Mas é essa irreverência e falta de tato pra se ajustar a uma pequena colônia de vespas e maribondos que faz com que Andie se torne a menina dos olhos de Blane (Andrew McCarthy). Ele gosta dela e ela é apaixonada por ele. Nessa colisão de dois mundos diferentes temos a aflição que muitos adolescentes já passaram: a sensação de se sentir desajustado. Blane é rico, “bem-nascido” (o termo mais ridículo e popular nos dias de hoje) e faz parte da In Crowd (a galera cool, interessante e que deve ser copiada por toda a escola). Andie é pobre, faz suas próprias roupas (sendo o símbolo máximo do vintage, que se reinventa com o que tem) e não tem nada a oferecer a Blane. Mas o sentimento existe e ele se desenvolve fora do campo financeiro, dentro de uma loja de discos.



A música dá o “start” ao relacionamento de Blane e Andie. Para ajudar na renda familiar e sustentar o pai preguiçoso e desempregado, ela possui um trabalho de meio período na loja de discos da cidade. E em se tratando de anos 80, todo jovem adoraria ter esse emprego: estar repleto de discos, receber as novidades musicais do momento e poder ouvi-las antes de todos. E é justamente lá que Blane a conhece pra valer. Entre um rápido flerte sobre o disco por ele comprado, o nome de Madonna e Lionel Richie são mencionados e Andie deixa claro que, mesmo a Rainha do Pop (que na época estava bem longe disso) sendo irreverente, seu estilo era icônico.

Não só o fato de Madonna ter sido anunciada previamente como ícone de uma geração e marco histórico e cultural de estilo, música e postura, a Garota de Rosa Shocking nos leva aos dois ambientes mais frequentados pelos jovens: a escola e a loja de discos. Duas verdades inversamente proporcionais: enquanto em um você se sente preso, reprimido e desajustado, no outro você se sente a vontade, em casa, confortável. A música sempre teve esse papel na vida dos adolescentes e sempre refletiu a inquietude dessa pequena nação.

É em uma pequena casa de shows ao som de uma banda New Wave que Andie se conforta após uma humilhação em seu primeiro encontro com Blane, é na loja de discos onde eles se encontram para o mesmo encontro e é exatamente neste lugar onde Duckie se declara para Andie. Sem ao menos proferir palavras, ele entra sem apresentações na loja e faz o playback de "Try a Little Tenderness" de Otis Redding, em uma das cenas mais espetaculares da história do cinema. Ele não diz nada, mas fala como ninguém sobre o tamanho do amor que sente por ela.

Este é o papel da música no cinema. Não é um adereço ou acessório que acompanha a cena. Ela funciona como o tom exato da melodia cinematográfica, que faz parte da trama e molda os personagens, seus sentimentos e reflexões sobre a vida e o futuro. Enquanto a geração atual é musicalmente confusa e perdida, sem saber aonde se enquadrar, a década de 80 é repleta de jovens também confusos, mas cheios de identidade, que se revela por meio de bandas New Wave que se consagraram com maior veemência com a chegada da MTV em 1981. Pode parecer besteira, mas a simplicidade do cinema está justamente em unir esses elementos: histórias simples e canções propositais.



A cena final de a Garota de Rosa Shocking não apenas fecha a comédia romântica com aquilo que queríamos ver, mas também encerra com uma das canções mais famosas desde seu lançamento: “If You Leave”, de Orchestral Manoeuvres in the Dark. A música é tão importante quanto o desfecho do relacionamento de Blane e Andie. Ela simboliza o amor dos dois jovens e a sensação de abandono vivida rapidamente pela garota, que se sentira quase rejeitada pelo bonitão da escola justamente por sua condição social. A música fala da dor que é estar apaixonado, do orgulho próprio e do sentimento confuso que o amor pode ser. E ela foi composta apenas 24 horas antes da edição final do filme. É preciso ser mais proposital que isso?

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