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Segunda-feira, 29 de abril de 2024

Colunas

Uma história sobre sorte, azar e uma aposta sobre o destino

Arquivo Pessoal

“O que você acha?”, perguntou uma voz grave que pedia uma segunda opinião, mas sem perder a confiança – o queixo levemente erguido era prova disso. “Não sei, ele não parece que vai conseguir”, respondeu o outro, de braços cruzados, olhando fixamente algo abaixo, enquanto o primeiro passava levemente a mão direita pela barba.

De cima de um alto prédio, os dois sujeitos ficavam lado a lado observando as pessoas passarem pela rua; alguns andavam calmamente enquanto olhavam pássaros enfileirados em fio de alta tensão; outros corriam atrasados para o trabalho, tropeçando em desníveis da calçada e desviando de pessoas que viravam obstáculos. “Eu acho que ele vai conseguir”, retrucou a voz grave, fantasiando em ganhar a aposta que havia feito uma hora antes.

Coitado de José. Antes de entrar em corrida desesperada, seu despertador em que confiava há mais de três anos falhou nessa manhã, deixando-o ser acordado pelo sol e cantar dos pássaros. Recém-contratado de uma grande empresa, estar atrasado nos primeiros dias de trabalho não iria passar a boa impressão que queria, e qualquer falha poderia influenciar em sua carreira profissional. Pulou da cama assustado, tateando o criado-mudo em busca do relógio e de seus óculos, e os ponteiros apenas confirmaram a má notícia do dia: dormira 45 minutos a mais, o que lhe dava vinte minutos para chegar ao trabalho e um grande desespero.

Enquanto corria pela rua, sentia que aquele não era seu dia. As pessoas à sua frente estavam andando incrivelmente devagar; havia poças de água estavam espalhadas por todos os lados devido a uma forte chuva que ocorrera na madrugada, escondendo buracos e molhando boa parte de sua calça; funcionários carregavam grandes vidros para serem colocados em uma vitrine de uma loja, o que fez com que ele quase acertasse em cheio um deles apoiado próximo à parede. Se fosse um rapaz supersticioso, teria contado os dois gatos pretos e a escada por que passou por baixo durante a corrida, mas, como não era, somente percebeu de fato a escada, o que o deixou levemente preocupado: embora não acreditasse nessas coisas, naquele momento ele precisava de toda ajuda possível.

Após correr por dois quarteirões, começou a perceber uma imensa fome, que lhe corroía aos poucos. E, para seu azar, estava em uma rua com várias lanchonetes já abertas, esbanjando cheiro de comida servida, mas que não poderia desfrutar por alguns minutos, já que era seu emprego que estava em risco.

Curiosamente, embora tivesse vários momentos de azar, havia alguns que poderia ser considerado como sorte: acordara em um horário que talvez não se atrasasse, embora toda a confusão que daria; não caiu em nenhum buraco um pouco mais fundo escondido por uma poça d’água, o que poderia ter torcido o tornozelo e rompido ligamentos; conseguira desviar das pessoas sem esbarrar em alguém, e sem ninguém correr atrás gritando e chamando-o de ladrão; não batera no grande vidro da vitrine da loja, mesmo que todo seu corpo tenha se contorcido de uma forma quase antinatural…

E então, às 7:32, ele conseguiu passar pela porta principal do prédio em que trabalhava. Ao longe, as duas vozes discutiam.

“Ele chegou a tempo!”, disse a mais grave.
“Até chegar ao escritório, que é o que vai importar para o chefe, já terá se atrasado! Isso se ele não passar no banheiro antes…”, dizia a segunda.
“A gente apostou sobre ele chegar ao trabalho a tempo. Considerando uma pequena margem de erro, ele conseguiu”.
“Chegar ao trabalho inclui ele ser visto pelos funcionários com quem trabalha! Considerando a fila para entrar no elevador, e o tempo até chegar no décimo quarto andar… Ele se atrasou, e você perdeu a aposta!”

Enquanto ruminava pensamentos, e considerando os argumentos do outro, a voz grave respondeu:
“Vamos considerar esse como um empate, e a gente decide sobre isso olhando outro, pronto!”
“Tá bom, tá bom… Já que não aceita perder…”
“Agora, quer comer alguma coisa? Tudo isso me deixou com uma certa fome…”
“Vamos, a gente pode ir naquela lanchonete ali”.
“Ok”.

Para José, o resto do seu dia foi estranhamente normal, não notando mais nenhum sinal de azar ou sorte inexplicável. Exceto o fato de que não havia café no escritório, e isso era imperdoável.

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