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Domingo, 28 de abril de 2024

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O corpo nas relações de poder e o uso de entorpecentes na história da humanidade

Arquivo Pessoal

A história da humanidade pode ser escrita através da história das drogas. 

Desde os primórdios o homem experimenta-se de diversas formas na relação com o cosmos. Muitas religiões utilizaram ou ainda utilizam de substâncias alucinógenas em seus cultos e cerimônias. Transcendência. As drogas dariam uma espécie de poder para acessar ou criar realidades. Há na ciência quem defenda as duas coisas. Acessando ou criando realidades, é inegável que elas sempre estiveram ligadas a história humana. Inspiraram o universo artístico, literário, político e científico. A história da humanidade é a história das drogas! Drogas para criar. Drogas para inspirar. Drogas para curar. Drogas para matar. Drogas para limpar. Drogas para dormir. Drogas para esquecer. Drogas para lembrar. Drogas para todos os males desse mundo. 



Farinha de trigo, açúcar e sal são os alimentos que mais matam no mundo e ninguém fala em proibí-los. Parafraseando Leonardo Sakamoto, se tudo que pode nos fazer mal tivesse que ser proibido, começaríamos pela Batata frita ou pelo X-Bacon. Dogão com cheddar. Milkshake com caramelo. Refrigerante. Suco de caixinha. Coxinha. Risoles. Bolovo. Enroladinho de queijo e presunto. Salame. Copa. Costelinha de porco. Feijoada. Picanha com farofa. Porção de calabresa. Frango a passarinho. Torresmo. Ovos com bacon. Joelho de porco. Cupim casqueado. Leitão a pururuca. Virado a paulista. Dobradinha. Sarapatel. Barreado. Maniçoba. Vaca atolada. Moqueca baiana. Acarajé. Salada russa. Polpetone. Lasanha. Pizza de quatro queijos com borda de catupiry. Fogazza. Pastel especial com ovo. Rosca recheada de linguiça. Pudim. Bolo de chocolate. Brownie. Donut. Bomba. Sonho. Biscoito recheado. Waffle. Salgadinho. Ovinho de amendoim. Amendoim japonês. Paçoca. Doce de leite. Churros com doce de leite. Bombom de cupuaçu. Bombom recheado com licor de cassis. Cerveja. Cervejinha. Chope. Caracu com ovo. Cachaça. Tequila. Vodka. Uísque com gelo. Uísque sem gelo. Licor de jenipapo. St. Remy (o horror, o horror…). Campari. Martini. Bebida que Pixxxca. Caipirinha. Caipiroska. Cosmopolitan. Marguerita. Kir Royal. Bombeirinho. Cigarro. Cigarro de palha. Charuto. Cigarro de cravo.

O que acha, vamos proibir essas substâncias nocivas para nosso corpo também?




Igreja, Estado e Ciência são instituições que arrogam para si o discurso do controle do corpo de diferentes formas. Desde as sociedades antigas até a mais moderna o corpo está no centro das relações de poder, já analisava o filósofo francês Michel Foucault. Todos querem ditar o que devemos ou não fazer com nosso corpo. O que podemos comer ou beber, como podemos nos vestir, quais palavras são permitidas falar, como podemos transar e que drogas podemos ou não consumir. Não somos donos de nós mesmos segundo a Igreja e o Estado. Querem escolher a droga que devemos usar. Proíbem umas e permitem e se omitem diante de tantas outras. O que faz o vinho da missa do padre ser algo liberado e outras drogas como maconha serem proibidas? A Igreja criou isso como pecado e o estado criou isso como lei. E de tempos em tempos eles elegem o aceitável e o inaceitável para nosso corpo.

Especialistas lamentaram a posição do papa Francisco em seu discurso, quando criticou iniciativas que estariam “deixando livre o uso das drogas”.

Segundo a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, “lamentavelmente, o papa se equivoca ao relacionar as políticas antiproibicionistas com uma ideia de liberou geral, de anarquia, quando é justamente o contrário”. As pessoas que defendem a legalização a querem com regulação, com ação do Estado. Hoje, as drogas são proibidas e, mesmo assim, o consumo cresce no mundo. A jurista Maria Lúcia Karam, membro da ONG internacional Leap (Law Enforcement Against Prohibition), disse que o papa “irá compreender, mais cedo ou mais tarde”, que os sofrimentos causados pela proibição são maiores do que os do vício. “Essa política de guerra às drogas é inconciliável com os valores cristãos. Ela provoca violência, morte, está enchendo os cárceres do mundo todo”, disse. “A legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas é fundamental para por fim a esses sofrimentos.”

O antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública disse ser a opinião do atual papa algo profundamente equivocada. É muito bem intencionada, ninguém duvida, mas está na contramão do que os pesquisadores têm encontrado crescentemente. A proibição está na raiz de todos os problemas mais importantes e da violência associada às drogas. Soares afirmou ainda que, em sua crítica, Francisco deixou de se referir a substâncias lícitas como álcool e tabaco, cujo consumo e a dependência estão muito mais disseminados entre a população, com maiores danos. “Se ele está convencido de que a proibição é necessária, teria, por uma questão lógica, de estendê-la ao álcool e ao tabaco. Será que o papa está disposto a arcar com o corolário da sua própria proposição?”, perguntou.

Quem é o Estado para dizer que álcool e cigarros podem e maconha não? Com base em qual ciência surge essa famigerada proibição?



A maconha era vendida em farmácias antes de sua criminalização. A droga tem, pelo menos, 10.000 anos. Estudiosos da história da planta, cujo nome científico é Cannabis, dizem que ela era usada para fins medicinais, na Índia, China e Egito no século III a.C. Trazida ao Brasil por colonizadores europeus no século XVI, a maconha foi difundida principalmente entre os escravos, conta Jonatas de Carvalho, mestre em história, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos (NEIP). No país, a maconha, importada legalmente da Europa, era usada no combate a cefaleia, insônia e mal estar e era comercializada com prescrição médica em farmácias. "Ela foi vendida até a metade da década de 1940 e tinha o acompanhamento da 'Seção de Fiscalização de Entorpecentes', que inspecionava os estabelecimentos farmacêuticos", diz Carvalho. As restrições ao seu uso no Brasil, mesmo para fins medicinais, no entanto, começaram a ganhar força na década de 1920, por conta de interesses, como a pressão das indústrias têxteis, já que o cânhamo, extraído do caule da Cannabis, era usado na confecção de roupas. "A primeira regulação de caráter internacional foi na II Conferência do ópio em 1924 e um pedido do Governo da África do Sul introduziu a maconha no debate e culminou com sua inserção na lista de substâncias a terem o comércio regulado", diz o professor. No país, com a criação, em 1936, da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), formada por advogados, a droga foi criminalizada. "A Comissão foi fundamental para o processo de restrição e proibição no Brasil", diz Carvalho. De lá para cá a posse da maconha virou crime. Nos últimos anos, entusiastas têm defendido a liberação do uso da erva no Brasil, mas a discussão ainda não avançou. Atualmente, alguns países, como a Holanda, liberaram o consumo da erva ou seu uso para fins medicinais.

O presidente do Uruguai José Mujica desprezou as advertências da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife) que questiona em seu último relatório anual a legalização da produção e venda de maconha aprovada no país. "A ONU, que é tão velha, está puxando a nossa orelha. E vamos dar tanta bola para isso como dão as grandes potências quando tomam suas decisões", afirmou Mujica, em alusão a sua política sobre a maconha. "Vamos ganhar esse jogo. Vamos mostrar qual é o caminho das reformas", acrescentou. "Somos um país pequeno e eles se assustam. Mas me assusta mais que levemos 100 anos reprimindo e ficarmos pior, multiplicando a riqueza que vai parar na mão dos grandes, enquanto os povos e a juventude se desfazem", expressou o líder. O presidente do Uruguai fez estas declarações após receber um prêmio da Associação Latino-Americana para os Direitos Humanos (Aldhu), entregue em reconhecimento às "reformas substanciais" empreendidas durante seu governo, entre elas a regulação da maconha.

No Brasil, a sugestão de um projeto que regulamente o uso recreativo, medicinal ou industrial da maconha vai ser relatada pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF). A assessoria do senador informou que Cristovam pediu à Consultoria Legislativa um estudo sobre a viabilidade de transformar a ideia em projeto de lei, para tramitação formal. Ele vai apresentar o resultado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). De acordo com a sugestão recebida pelo Portal e-Cidadania, que recebeu mais de 20 mil manifestações de apoio, o uso da maconha deve ser regulamentado, assim como ocorre com as bebidas alcoólicas e os cigarros. A proposta prevê ainda que seja considerado legal "o cultivo caseiro, o registro de clubes de cultivadores, o licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e a regularização do uso medicinal". 



Estamos no caminho de derrubar mais uma hipocrisia incrustada em leis que regem nossa sociedade também hipócrita. Muitas autoridades e pessoas comuns de bem já começam a se manifestar em favor dessa causa. Sem manipulações e hipocrisias, creio que estamos no caminho certo.

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco

Indicação de Documentários sobre o Tema:

A história das Drogas



Quebrando o Tabu



Cortina de fumaça



Um pé de que? Cannabis





Grass - a verdadeira história da maconha



 

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