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Domingo, 28 de abril de 2024

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Em terra de yuppie, quem assusta é rei

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Sabe aquelas coisas que mais tememos quando crianças, que tiram o nosso sono de vez? Aqueles barulhos estranhos no meio da noite, que despertam a nossa criatividade para o que há de mais macabro que aterroriza nossos pensamentos. Muitos desses temores foram criados pelo nosso próprio imaginário. O tilintar de qualquer objeto já era capaz de desencadear as suspeitas mais terríveis de seja-lá-o-que-for sobre sei-lá-o-que. Não víamos nada, mas já “pressentíamos” tudo. Um corpo estranho movia as coisas de lugar, nos assustava, nos amedrontava. Só podia ser um fantasma.

Esse tipo de coisa assusta pra valer. Você não quer crer, mas na noite mais escura, onde todos em casa dormem profundamente, todas aquelas histórias sobre a Maria-de-Algodão e a Loira-do-Banheiro fazem sentido. E se você não faz ideia do que eu estou falando, precisa sentar com alguém um pouco mais velho que você. A Maria-de-Algodão era uma das coisas mais macabras do mundo.

Com tanta coisa assustadora dita pelos mais velhos, sons duvidosos e histórias contadas pelos coleguinhas de sala, como é que um filme de terror poderia se tornar algo tão engraçado? A referência não é feita em relação aos clássicos trash, que nos obrigam a rir pelo pitoresco apresentado. Me refiro ao lance de “rir da desgraça alheia” ou melhor, rir do nosso próprio suposto infortuno (em outras palavras, desgraça). Como um filme de humor negro é capaz de se fazer compreender para uma geração tão jovem, amedrontada e inocente?

Talvez hoje ele pudesse ser censurado. Em terra de gente cada vez mais sensível, filmes com um tiquinho a mais de sangue, olhares cerrados e postura irreverente poderiam ser tachados como inapropriados. Tudo bem, são os tempos contemporâneos. Mas uma das coisas que mais sinto falta dos anos 80 é a inocência que nos permitia chegar um pouco mais longe no cinema, sem escandalizar. Para ser mais clara, sinto falta de filmes como Beetlejuice – Os Fantasmas se Divertem (1988).



Esse é um daqueles clássicos que combinam duas coisas que – aparentemente – não casariam muito bem: comédia e terror. São duas verdades inversamente proporcionais. Tecnicamente, não costumam caminhar lado a lado. Não em filmes de qualidade. Essa mistura um tanto incomum e até traiçoeira pode causar certa estranheza, mas Beetlejuice é mais um daqueles breves espaços no tempo onde não há som e tudo se encaixa. E se Tim Burton é o tipo de cineasta que curte colocar seus pensamentos mais obscuros em tela, ele encontrou a fórmula certa quando nos presenteou com Os Fantasmas se Divertem.

Nesse filme, uma família de yuppies acaba de se mudar para um pacata cidade do interior. Para os poucos familiarizados com o termo, yuppies é a derivação da sigla YUP – Young Urban Professional (jovem profissional urbano). Eles são cools (com idade média entre 20 e 40 anos), estão por dentro da moda, são conceituais e vanguardistas. E quando o patriarca Charles Deetz (Jeffrey Jones), a típica adolescente revoltada Lydia Deetz (Winona Ryder) e sua madrasta Delia Deetz (Catherine O’Hara) se instalam na casa que anteriormente pertencia a um casal novo (Adam Maitland, interpretado por um Alec Baldwin estranhamente magro e Barbara Maitland, vivida por Geena Davis), eles mal sabiam que seus falecidos antigos donos viriam para tomar o que era deles por “direito”.

No mundo real, bastaria uma rápida série de sustos para espantar qualquer morador de mala e cuia da residência. Mas em se tratando de yuppies, amantes do desconhecido, desbravadores do encoberto, gente que assusta não assusta, encanta. Trocando em miúdos: em terra de yuppie, quem assusta é rei. E como os Maitland se tornaram incapazes da expulsar a família Deetz de sua casa, gerando o efeito reverso sobre eles, a saída drástica é chamar por Beetlejuice (brilhantemente feito por Michael Keaton, o futuro Batman de Tim Burton), o Besouro Suco – na tradução brasileira.

E seu chamado é peculiar. Ele não pode se apresentar pronunciando seu terrível nome. Se você o quer tocando o terror no mundo dos vivos, transformando pesadelos em ocorrências reais, deve fazer isso por sua conta a risco. É você quem o chama. Logo, qualquer estrago que ele causar é culpa sua. O desafio é proposto e o que vemos desencadear no decorrer de uma hora e meia de filme é o nosso maior pesadelo se transformando na risada mais gostosa.

Tim Burton traz um humor negro para crianças. É claro que a obra é visualmente atraente para todos as gerações, mas a proposta de Beetlejuice é focar naquilo que os mais novos temem: o desconhecido invisível, o monstro do armário ou aquele que pode puxar seu pé no meio da noite. O cineasta une esses elementos tão terríveis e nos mostra que nem sempre o assustador é tenebroso. Ele pode ser sim ameaçador, mas rir dele é a saída mais rápida do desespero.



É extremamente difícil encontrar filmes de humor negro feito para crianças. Isso não existe. Humor negro costuma ser pesado, denso para ser digerido por mentes tão frescas, complicado demais para ser engraçado para um público tão jovem. Humor negro é confuso, é um humor de gosto duvidoso. Mas funcionou. Burton pegou o politicamente incorreto para menores, o suavizou sem perder a graça e trouxe para o cinema a comédia mais obscura já feita. Sua simplicidade em unir nosso medo ao cômico nos permitiu rir – ainda pequenos – daquilo que poderia ser nosso maior pesadelo.

E Beetlejuice poderia muito bem ser assustador. Elementos gigantescos transbordam na tela e as cores frias e escuras passam um ar sombrio nas cenas feitas longe da claridade natural. Mas, ao invés disso, o teor de terror mesclado com a comédia dá o equilíbrio certo que nos faz se impressionar com a sagacidade do pilantra Beetlejuice, à medida que nos encantamos com sua postura politicamente incorreta.

Parece que hoje estamos mais sensíveis em relação a isso. Talvez seja porque as histórias voltadas para o público jovem (de crianças, passando por adolescentes e fechando o cerco com jovens) venham mastigadas. Elas não são profundas o suficiente. É como se a geração de hoje não fosse dar conta de administrar o não dito no filme, mas que está lá. Como se ela não conseguisse sair da linha do óbvio e descobrir a obra que assiste por uma ótica mais profunda. É como se não fosse possível digerir essa densidade de outrora na geração de hoje.

O que gosto dos filmes dos anos 80 é que os mais emblemáticos possuem censura livre e nem por isso assumiam um papel deveras ridículo. Boas comédias eram bem feitas sem extrapolar os limites dessa censura. Parece que hoje a criatividade se perde. É como se eles não soubessem como fazer filmes sem ter pequenos aspectos apelativos. É difícil fazer algo pop sem ofender um nicho da sociedade. E Betlejuice é daqueles filmes que ocupam duas colunas com maestria: ele é pop, mas também é cult.



Seu elemento pop está nas canções apresentadas no filme. A cena mais divertida pode ser posicionada como a mais pop de todas. Enquanto a família Deetz janta à mesa com outros amigos yuppies, o casal Maitland faz algo mirabolante, os obrigando a dançar a canção Day-O (The Banana Song) da maneira mais bizarra possível. E o cult está presente na essência dos personagens. A adolescente rebelde é esquisita, conceitual e típica (“ninguém me ama, ninguém me quer”), a madrasta é artística, abstrata e apaixonada pela arte moderna. Já o pai só quer um bom lugar para descansar e ler um livro.

Em Beetlejuice somos levados a uma catarse, mesmo sendo tão jovens. E a mesma sensação se repete ao re-assistir o filme 26 anos após seu lançamento. Tim Burton traz à nossa consciência memórias assustadoras recalcadas, escondidas no nosso subconsciente. Ele traz à luz o terror que se esconde nas sombras do nosso quarto, no tilintar de objetos em uma noite escura. Ele nos leva a essa viagem insana, onde aprendemos – a cada nova assistida do filme – a rir dos nossos medos e a espantar o temor.

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