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Domingo, 28 de abril de 2024

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Corpos dilacerados: Uma história sobre uma lâmina, um rapaz e as coisas que o cercam

Arquivo Pessoal

Antônio saía de casa às sete horas da manhã, com a mochila nas costas e o sono ainda o acompanhando. Estava no último ano do ensino médio, mas sentia-se como indo a um abatedouro diariamente, desfiando-lhe a felicidade da esperança; o medo do sossego; a amizade dos livros; tal como a afiada faca separava os pedaços de carne em regiões determinadas, com tamanha leveza que o simples toque já começava o corte. Ele sentia os pelos eriçando-se à presença da lâmina, como resposta à incisão que viria a seguir; sentia-se uma carne sendo fatiada.

O sol ao alto já indicava que iria se atrasar, caso não apertasse o passo. As ruas estavam cheias de carros, pessoas indo para o trabalho, para a faculdade, para uma forma alternativa de dissecção humana. O chefe brigaria com o funcionário; o funcionário, em revolta desesperada, pediria demissão em pé; o chefe apontaria o dedo; o funcionário ergueria o nariz; os seguranças iriam agir; alguém teria filmado tudo isso – era evidente, pensava Antônio, que algo assim aconteceria com o carro preto que aguardava o semáforo ficar verde e permitir o trânsito ao final destinado.

Em algum outro lugar, em alguma calçada já gasta pelos passos arrastados, alguém seria a vítima da brincadeira da vida. Com uma certa hesitação e algum medo que ainda não lhe tinham tirado, um rapaz pegaria um revólver calibre 38 da calça e o apontaria para um desconhecido qualquer; palavras rápidas e desajeitadas sairiam para o ar retê-las em desespero, o outro tentaria puxar de seu bolso uma carteira que servisse à situação, mas que as mãos tremendo dificultavam que conseguisse. O dedo indicador flexionaria sobre o gatilho, dando fim ao desespero dos dois, e a tensão e o horror seriam manchete de jornal no dia seguinte, quando as palavras tentassem debilmente retratar o que ocorrera.

Por um segundo, Antônio imaginou a vida como um grande faz de contas, em que ninguém parecia realmente interessado na lâmina afiada que perseguia todos, já tão indefesos; ao contrário, aquilo parecia como uma leve distração de suas rotinas, algo inesperado que surgia devido a alguma maldição de um deus insatisfeito, atormentando os que pisavam em terra, derrubando os que voavam no céu.

Enquanto andava por entre carros e pessoas, ele viu um cachorro já todo sujo e cuidado pelas ruas revirando restos de comida em uma sacola de lixo. O olhar era baixo, como se a tristeza lhe invadisse em profundidade, como se sentisse humilhado por ter de sobreviver dessa forma. O rabo não balançava, exceto para espantar algumas moscas que perseguiam um machucado em sua pata traseira direita.

Antônio aproximou-se devagar, e o cachorro, notando sua presença, afastou-se quase correndo, olhando para trás para ver o perigo que vinha. O rapaz agachou e tentou chamar pelo cão assustado, mas ele apenas se distanciava cada vez mais. Dobrou uma esquina e desapareceu.

Em um pequeno gesto, dois sujeitos tiveram seus corpos dilacerados nesse abatedouro.

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