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Domingo, 28 de abril de 2024

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O que há de ensurdecedor na ausência das palavras em Moebius

Marido e mulher lutam pela posse de um celular que toca. As palavras não são ditas. O marido trai a esposa dentro do carro estacionado em frente a própria casa. A esposa, após fracassar no decepamento do membro de seu marido, acaba por castrar o filho adolescente que dormia e, como se fosse pouco, mastiga e engole o pênis do rebento.
Peço desculpas pelo spoiler, mas a descrição acima versa apenas sobre os primeiros 10 minutos de Moebius, último longa-metragem do sul-coreano Kim Ki-duk, lançado em 2013 no Festival de Veneza.

Essa agressividade vista nos primeiros minutos irá se estender por todo o restante da obra. O chocante caminha lado a lado com o imprevisível.Temos 90 minutos de densidade obscura e extremamente nauseabunda quando o desejo sexual é apresentado como mote da desolação familiar. Tema comum na filmografia do coreano, lembra muito, e por isso incita comparações, Pietá(2012).

Pietá, vencedor-mor de Veneza no ano anterior, tem, aparentemente, distinções galopantes quanto a produção de Moebius. Pietá respeita o rigor técnico e estético visto na carreira do diretor, enquanto Moebius soa como uma produção menos endinheirada.Mas a digital de Kim está lá, ele é o responsável pela câmera digital que registra a maior parte das ações.

A câmera na mão do próprio diretor lembra, inevitavelmente, outro cineasta de agressividade pujante: Lars von Trier. São cinemas diferentes. Kim é notadamente censurado em seus filmes, e incorporou esta limitação à sua linguagem: não veremos com frequência o famigerado membro fálico e, muito menos, penetração como no cinema do dinamarquês. Porém, os diretores se tocam, também, em suas últimas obras por um fato um tanto novo em suas carreiras: o humor. Esse humor está presente em Ninfomaníaca (2014) e,já em Moebius, nota-seemergir nasurreal cena do roubo peniano.

Contudo, não é só com violência, sexo e humor chulo que o coreano incomoda. A falta do diálogo, recurso que temos por obrigatório na narrativa cinematográfica, soa como ruptura forçada nos primeiros minutos. Mas as ações que seguem expõema incoerência ao se esperar o tradicional desta obra. Somam-se a isso as atuações magníficas do trio de atores protagonistas, com destaque evidente para a Eun-woo Lee, que interpreta a mãe e a amante, o que descobri apenas depois de ver o filme, tamanha a distinção empregada por Lee em suas atuações. Neste ambiente sem falas ganha importância colossal o olhar, e o olhar ensandecido de Lee, quando mãe, é simplesmente mais nefasto que textos e textos, e mais textos, de diálogos.

O título, que revela algo que já se vê claramente nas ações do longa, é uma referência a geometria, mas especificamente, a fita de Moebius, uma espécie de fita que tem uma ponta ligada a outra após meia-volta, um ciclo infinito e não orientável, como se dá a trama e os personagens nesse filme. No pôster de divulgação está o seguinte poema: Eu sou o pai/A mãe sou eu/E a mãe é o pai.

Moebius faz, o já muito agressivo cinema asiático, parecer teen. A obra é uma reafirmação de Kim Ki-duk e seu estilo, que prova o quanto o poeta surrealista Breton estava errado quando confessou desolado a Buñuel, na década de 50, que já não era possível o escândalo.

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