Olhar Conceito

Segunda-feira, 29 de abril de 2024

Colunas

Diário de bordo de um fotógrafo na cobertura dos protestos: na dúvida é melhor sair vivo

A primeira coisa que veio em minha mente quando vi a foto do rojão que matou o cinegrafista Santiago foi: poderia ser eu. Sou repórter fotográfico também. Ele usava uma câmera de vídeo, eu utilizo uma fotográfica, mas nosso campo de ação é o mesmo. Me assustei porque vi que há gente no mundo pode me matar caso a situação, a sorte e os caminhos do destino levem a trajetória do foguete à minha cabeça.

Leia também: Desabafo de um repórter fotográfico: a imagem como retrato da realidade
Diário de bordo de um fotógrafo: Um ano de Chile

Cobri diversos protestos aqui no Chile, desde que começaram em 2011 com a revolta pela educação gratuita (pois é, brasileiro acha que o Brasil é uma merda completa mas nosso país é um dos poucos que conta com educação grátis em todos os níveis escolares, mesmo que de qualidade questionável). No início eu era mais medroso, ou prudente. Ficava de longe, usando teleobjetiva. Com o tempo, percebi que não dá pra contar a história direito olhando à distancia e comecei a usar a grande angular, que me força a estar dentro da ação. E estar dentro da ação significa também correr perigo, ter que se protejer de jato de água, pau, pedra e molotov. E topamos, porque as melhores imagens saem assim.



Um dia tomei uma pedrada que atingiu a bolsa da câmera. Me assustei muito porque a parte mais violenta do protesto já havia passado e eu estava apenas caminhando tranquilo. Como tinha um carro de polícia perto, preferi acreditar que o alvo não era eu. Mas em outro protesto veio a primeira agressão. Os “encapuchados”, versão chilena do “Black Bloc”, estavam destruindo as portas de uma loja enquanto o dono abria os braços pedindo para que parassem. “Fotão” - pensei. Mas não deu tempo. Quando botei a camera no olho, um dos mascarados correu na minha direção e me empurrou dizendo: “Corre! Corre!”. Fiquei meio consternado, eu e minha inexperiência não esperávamos aquilo, porque até então eu só conhecia dois personagens que faziam esse tipo de ameaça, mandando correr: bandido e polícia.

Aí caiu a ficha. Eu idealizava a revolução desses caras, de verdade admirava mesmo uns tipos jovens que saiam da sua zona de conforto pra mudar o mundo, enfrentando a violência policial, desafiando empresas poderosas e aqueles que reinam com mãos de ferro. Mas descobri que eles me odeiam porque carrego uma camera profissional. Sou da imprensa oficial. Sou vendido. Mas esses caras não sabem meu nome, de onde vim, o que eu penso, o que eu li e nunca viram minhas fotos, não conhecem absolutamente nada a meu respeito e, numa fraçao de segundos fazem seu julgamento, que me enquadra como inimigo pelo simples fato de carregar uma camera e registrar o que vejo, seja quando a policia bate, seja quando eles quebram bancos.



É a merda da simplificaçao de tudo. Os encapuzados nao percebem que ao fazer isso, vestem uma mascara idêntica a dos seus inimigos. Viram farinha do mesmo saco. Se toda a imprensa é vendida e todos os políticos são ladrões, então todo pobre é bandido, toda revolução é inútil e todo universitário é maconheiro.

O mundo, camaradas, é muito mais complexo. É difícil entender. Como o amor e a guerra, como a física quântica e o futebol, como a mãe da gente. E como a morte de Santiago. Quem acendeu o rojão? Apontou pra matar? Foi acidente? Foi um manifestante? Foi policia? Foi culpa da Band? Da Globo? Culpa dos brasileiros? Percebem? São muitas interrogações pois é dificil responder. Se a gente continuar simplificando nosso mundo, vai voar pau, pedra, bala de borracha e rojão pra todos os lados. Nos velhos, nos jovens, nos esquerdas, nos reaças e na polícia. E não chegaremos a lugar algum que não seja a cadeia, hospital ou cova.



Com intolerância de todos os lados, a vitória, se vier, será difícil e feia. Até lá, continuaremos com nossas lentes, tentando de diferentes maneiras realizar a tarefa de contar a história, com toda sua complexidade. E no meio da confusão, talvez a única maneira de não acabar como Santiago é aprender com um erro seu que, esse sim foi simples e crucial: ele não usava capacete. Na dúvida, é melhor sair vivo. Porque é vivo que se cumpre a missão.


*Lucas Ninno é fotógrafo, saiu de Cuiabá para se aventurar no Chile e agora trabalha como repórter fotográfico para a United Press International (UPI) e escreve quinzenalmente para o Olhar Conceito com as desventuras do seu próprio olhar

Comentários no Facebook

Sitevip Internet