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Domingo, 05 de maio de 2024

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O porquê do azul ser a cor mais quente

O azul é a cor mais quente. Esqueça o famigerado conservadorismo dos sociais democratas brasileiros. Quem diz e mostra o porquê o Azul é a cor mais quente é o diretor Abdellatif Kechiche e as atrizes, igualmente autoras, Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos. O longa foi premiado em 2013 com a Palma de Ouro do Festival de Cannes.

Permita-me uma rápida digressão: A Serbian Film recentemente citado por aqui foi censurado aqui no Brasil, e tal iniciativa se deu justamente pelas mãos de outro partido ligado a direita, o DEM.

A história do diretor franco-tunisiano é baseada na HQ “Le bleu est uma couleur chaud” da francesa Julie Maroh, e relata a vida da adolescente Adèle (Exarchopoulos), como sugere o título original “La vie d’Adèle”, e a passagem para a vida adulta. O evento condutor desta transição é a descoberta da homossexualidade e o encantamento arrebatador por Emma (Seydoux), dona de mexas azuis, mais velha e, mais elitizada social e culturalmente.

As diferenças entre elas parecem gritar durante o filme. Na casa de Adèle só se come macarronada e os pais da moça chegam a criticar a artista plástica Emma pela escolha profissional. Tal grosseria também acontece na casa desta quando é servido frutos do mar, prato detestado por Adèle, criticada agora por não escrever tanto e preferir lecionar para crianças. É oportuna a observação de que enquanto há um respeito e admiração por parte de Adèle para Emma, essa não goza do mesmo prestígio diante da companheira.

A cor azul presente no cabelo de Emma está espalhada pelo filme todo. Mesmo quando não há objetos de cena da cor tem-se a impressão latente de um “filtro” de cor azul. Kieslowski, em 1993, apresentava o seu “A liberdade é azul”, que traz a memória essa alusão da cor com o lema da Revolução Francesa. E, justamente, a liberdade é o que reclama Kechiche neste trabalho. A liberdade à menina Adèle de dar o seu amor a quem quiser, e é sim, e também, da liberdade sexual que falamos.

Por isso se fazem necessárias tantas cenas de sexo, menos como apelo e mais como instrumento de humanizar a relação afetiva entre as personagens, são cenas fortes e podem soar irreais até mesmo para lésbicas. Mas este longa carrega em si uma forte carga de realismo e, consequente, verossimilhança devido à estética empregada que não deixa espaços tal desconforto no público. A escolha pelos enquadramentos bem fechados focando os rostos é pontual e feliz, e revela por meio da falta de maquiagem nas atrizes, mais que uma negação da cosmética adotada pelo cinema, exibe um naturalismo quase documental que é potencializado pelas atuações memoráveis das duas atrizes. Não é à toa que receberam a Palma de Ouro juntamente com o diretor.

Com tais enquadramentos os lábios semicerrados de Adèle ganham metade da tela, mostrando uma menina tão inocente quanto lasciva, e esta confusão dá-se, até mais, na cabeça da personagem do que na do público. Não veremos aqui a heroína com sua aura de perfeição costumeira. Adèle tem dificuldade em se assumir publicamente e cai na, tão clichê, confusão de orientação, que a leva à infidelidade. Se ela não encontra redenção, amadurece de forma notável. Evolução também notada em Emma, que após alguns anos, muda a concepção de administração de sua arte, seu cabelo já não é mais azul.

Azul é a cor mais quente é com toda certeza uma obra importante. Embora para construí-la o diretor Kechiche tenha arrumado muitas contendas: Léa Seydoux disse sentir-se enganada durante as cenas de sexo, e a autora do quadrinho alegou ser impedida de acompanhar o processo do longa. Há também questões trabalhistas vigentes quanto à equipe. Tantos problemas que Kechiche pensou em não distribuir mais seu filme, o que seria uma pena, pois quando entrarem os créditos finais o seu público, comovido, terá a certeza que o azul é a cor mais quente e libertária.


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