Olhar Conceito

Domingo, 05 de maio de 2024

Colunas

Uma história sobre uma senhora, um rapaz e uma sacola branca

Arquivo Pessoal

Haviam dezenas de pessoas naquele final de tarde. A maioria saía do trabalho exaustivo e tomava a rua com olhos cansados e pensamentos esparsos imaginando o bom banho que teria ao chegar em casa, o jantar que comeriam de bom grado depois, e a aconchegante cama que encontraria ao fechar os olhos. Outros ainda pensavam nas crianças que tinham que buscar, nas compras de mercado que precisavam fazer, no cachorro que pularia feliz quando a porta de casa fosse aberta...

Dezenas de pessoas em todas as direções. Embora todas na mesma calçada cinza da cidade barulhenta, poucos olhos se cruzavam. Eles permaneciam no chão à procura do nada ou, quando muito, esbarravam-se em placas que orientavam o caminho de casa, mesmo que o hábito já comandasse eficientemente as pernas. As luzes da cidade formavam sombras vazias que vagavam quase perdidas.

No meio dessa multidão, uma sacola branca se desvencilhou da mão de uma senhora, cujos setenta e três anos foram comemorados há duas noites. Um leve descuido fez com que os dedos, que já não possuem a mesma força de outrora, relaxassem mais do que podiam, e a simples sacola branca relembrou a gravidade de Newton.

Enquanto isso, os olhos da senhora aos poucos iam percebendo o que estava acontecendo. Em sinal de alerta, o cérebro comandou dois sinais simples: primeiro, que as pupilas fossem dilatadas, para que continuasse a ver o que aconteceria; segundo, que as mãos procurassem o topo da cabeça, como sinal exteriorizado que procurava dizer aos outros ao redor que ele não tinha ideia do que fazer para algo tão súbito.

E então a sacola encontrou seu destino na calçada úmida, fazendo um barulho seco suficiente para desviar apenas alguns olhos curiosos. As pernas desviavam da mulher e da sacola como se fossem obstáculos que haviam se colocado no caminho ao destino final. Aos poucos a senhora começou a se agachar, tomando cuidado com o que seus joelhos permitiam e para que não esbarrasse em ninguém.

Um rapaz, que curiosamente passava naquele lugar neste infortúnio momento, viu a cena ser feita, e como reflexo aproximou-se da senhora e pegou-lhe a sacola, com que um rosto de felicidade e olhos alegres e espantados responderam. "Muito obrigada!", ouviu-se. O rapaz, entretanto, não esperava tamanha gratidão, o que o fez ficar sem palavras, e as pernas deram-lhe tempo apenas para sorrir em resposta.

Ele nunca irá saber da importância do que havia na sacola branca. Poderia ser o alimento do dia, remédios para ela ou um possível marido, retratos e fotos que guardavam o passado, ou mesmo algo tão simples como um livro desconhecido que iria causar felicidade e surpresa para a imaginação. Também nunca saberia se a senhora sem nome ainda lembraria dele após chegar em casa, se seu ato teria sido marcante ou apenas o esperado; mas, para ele, o sorriso e a gratidão sincera do olhar já lhe foram suficientes para relembrar por toda a vida, mesmo que as pernas do rapaz não tenham visto.

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