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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Superfaturamento em contratações públicas: contexto jurídico e hipóteses de caracterização

A ideia de superfaturamento nas contratações públicas tem ressoado nos julgamentos dos Tribunais de Contas do Brasil, bem como ensejado diversas denúncias, desencadeadoras de ações penais ou, quando menos, demandas na esfera administrativa, trazendo, sem dúvida, danos significativos à imagem das Gestões Públicas e das Empresas envolvidas.

Aliás, o Ministério Público Federal, já em 2018, acompanhava de perto o trâmite da Nova Lei de Licitações, recentemente sancionada (Lei n. 14.133/2021), buscando que o superfaturamento de compras públicas tornasse um crime específico, a fim de que desvios no setor público fossem combatidos, fortemente, através do Direito Penal.

Almejava-se que o crime de superfaturamento em obras públicas pudesse prever a pena de reclusão de 4 a 12 anos, e multa, e em aquisições de bens e serviços, pena de reclusão de 4 a 8 anos, e multa.

A tese do Ministério Público era de que o superfaturamento de obras é um dos principais mecanismos para desvio de recursos públicos, segundo dados inclusive do Tribunal de Contas da União – TCU, que identificou que pelo menos 1/4 das obras fiscalizadas diziam respeito a superfaturamento.

Analisando o texto da nova lei, é possível perceber que o anseio não foi atendido, pois não há um crime específico de superfaturamento, muito embora a lei tenha trazido soluções para algumas polêmicas que até então existiam na jurisprudência.

Realço uma delas: o Superior Tribunal de Justiça – STJ entendia que o art. 96 da Lei n. 8.666/93 (antigo regramento), que previa o crime de fraude, não abrangia a contratação de serviços, porque textualmente não havia a previsão. O Tribunal entendia que o tipo penal deveria prever expressamente a conduta de contratação de serviços fraudulentos para que fosse possível a condenação do réu, uma vez que o Direito Penal deve obediência ao princípio da taxatividade, não podendo haver interpretação extensiva em prejuízo do réu (REsp 1571527/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 25/10/2016).

A nova lei, por sua vez, além de deixar clara a possibilidade de fraude na contratação de serviços, conforme atualmente previsto no art. 337-L, I, do Código Penal, endurece a reprimenda, que antes era de detenção de 3 (três) a 6 (seis) anos, e agora, reclusão de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa, sendo possível, portanto, o cumprimento da pena em regime fechado.

Nesse contexto, considerando a inovação legislativa, a recorrência do tema no âmbito da Administração Pública no Brasil e a real possiblidade de, em última análise, o superfaturamento caracterizar fraude ao contrato administrativo, impõe-se ao Gestor Público e às Empresas que eventualmente venham a ser contratadas a observância de algumas hipóteses caracterizadoras do superfaturamento. Trata-se de um alerta que pode, efetivamente, elevar a performance do respectivo controle interno e contribuir, por outro lado, para que as Empresas possam gerenciar os seus contratos em fiel sintonia com a legislação.

Destaco aqui algumas hipóteses em que o superfaturamento é reconhecido na prática, passível, pois, de ser diagnosticado, evitado e combatido: i) Superfaturamento por “jogo de planilha”: quebra do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em desfavor da Administração, por meio da alteração de quantitativos; ii) Superfaturamento por preços excessivos: pagamentos com preços manifestamente superiores aos praticados pelo mercado ou incompatíveis com os constantes em tabelas referenciais de preços; iii) Superfaturamento por quantidade: medição de quantidades de serviços superiores às efetivamente executadas/fornecidas, podendo ocorrer também com o pagamento em duplicidade ou por serviços não executados e iv) Superfaturamento por distorção do cronograma físico-financeiro (“jogo de cronograma”): ganho financeiro indevidamente auferido pela contratada devido à medição/ pagamento de serviços iniciais com sobrepreço, compensado pela medição/pagamento de serviços posteriores com desconto.

O rol acima é meramente exemplificativo; alguns inclusive são, propriamente, um desdobramento do art. 6º, LVII, da Lei n. 14.133/2021, o que já demonstra que tais parâmetros deverão ser observados pelo Gestor Público, sem prejuízo das Empresas contratadas gerenciarem os seus contratos a partir desses referenciais.

Portanto, pensar em superfaturamento no âmbito das contratações públicas é trazer a atuação pública ou empresarial necessariamente para o nível estratégico e preventivo. Afinal, o custo social é alto e os impactos são reais e contundentes.





Douglas de Barros Ibarra Papa é Advogado, Mestre em Direito (Largo do São Francisco – USP) e Especialista em Compliance e Integridade Corporativa (PUC-MG). Professor da UFMT. Membro da Comissão de Estudos Permanentes sobre o Compliance da OAB/MT e de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT e da Associação Brasileira de Advogados (ABA/MT). Instagram: @douglasibarra.

 
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