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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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A "recuperação judicial" da pessoa física - procedimento judicial para o superendividamento



Diferentemente da prática judicial de alguns países de mesmo eixo econômico capitalista que o Brasil a exemplo dos Estados Unidos da América e Espanha, até então ainda não tínhamos um preceito jurídico e normativo acerca da falência da pessoa natural no ordenamento jurídica brasileiro, aliás, para não dizer que não havia de fato “nada” acerca do assunto, ainda há e está em pleno vigor tanto no Código Civil               
(Arts. 955 a 965) e no Código de Processo Civil ( Art. 1052  - (Arts 748 A 766-A – CPC 1973)) o instituto processual e de reconhecimento da insolvência civil, diga-se de passagem, totalmente desatualizado, pouco utilizado e que dispendem tratamentos cruéis do ponto de vista do princípio do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, principalmente quanto a forma de sua aplicação, que mais dificulta o soerguimento do devedor do que a solução de suas dívidas.  Seria mais ou menos, afundar ainda mais quem já está com lama até o pescoço.

Desde 2013, através de um projeto de Lei iniciado no Senado Federal que tramitou duramente entre as duas casas legislativas com trabalho árduo de comissões temáticas acerca do assunto, sabendo da urgência de revisar a legislação a fim de modernizá-la e permitir o uso de mecanismos processuais menos gravosos e que possibilitassem de fato a solução ao SUPERENDIVIDAMENTO DO CIDADÃO BRASILEIRO sem a necessidade de sofrer desonrosos efeitos objetivos e subjetivos atinentes a atual forma dada pelo instituo da insolvência, que, como já discorrido, mais vislumbram aniquilar as chances de retomada do devedor, algo semelhante a punição, ao castigo, ao “fazer sofrer” o devedor por não pagar o credor, sem qualquer condão de parcimônia ou respeito a dignidade humana, além do consumidor ser visto como vilão nas falsas vantagens legais disponíveis ao credor, eis que surgiu o texto final da proposta legislativa e com ele a aprovação do projeto que se converteu em lei e já com efeitos imediatos.
 
 
Neste contexto, ainda sobre o delineamento da lei, a ideia de incluir junto ao texto normativo uma fase anterior à decisão de insolvência, já existente para as pessoas jurídicas (Lei da Recuperação Judicial  e Falências – 11.101/2005, atualizada recentemente através da Lei 14.112/2020) a fim de oportunizar ao devedor pessoa fisica a elaboração e apresentação de um verdadeiro “plano de recuperação de seu superendividamento”, hoje podemos vislumbrar uma solução adequada, voltada a preservação do minimo existencial da pessoa humana evitando sua “morte” civil e social, a exemplo da falência empresarial.

A partir de 02/07/2021, esse cenário caótico do superendividamento que vem passando o cidadão brasileiro, O Presidente Jair Bolsonaro promulgou com devidos vetos a Lei 14.181/2021 (Lei da Prevenção e tratamento do superendividamento) que alterou e inseriu preceitos normativos há muito sendo aguardados junto a Lei do Consumidor 8.078/1990

Com a promulgação da referida lei, retomou-se a imediata confiança dos negócios pessoais, assim como o retorno e a manutenção de atividades com potenciais de revitalização econômica, uma esperança a inúmeras pessoas físicas atingidas duramente pela atual crise econômica pandêmica e para as quais a mudança legislativa foi muito bem-vinda.

Há muito esperava o Brasil um preceito legal para em primeiro momento previnir e em segundo momento, por consequência, tratar adequadamente dentro dos ditames de nossa Carta Constitucional o superendividamento das pessoas físicas, simples consumidores que por atropelos da vida, se afogavam em dívidas impagáveis e ficavam sem nenhuma saída, o que incorrendo na consequência da manutenção de seu nome “sujo”, sem crédito e sem boa reputação, a pessoa, literalmente amargava sua morte civil e social, tendo que se conformar com sua exclusão financeira

A Lei do Superendividamento nasce com o objetivo de suprir essa ferida aberta pelo crédito exacerbado.
 
 
A lei, além é claro, de manter e reforçar os limites basilares do Código de Defesa do Consumidor, acrescentou mais princípios para substanciar e reforçar o seu propósito, dentre eles, o  princípio do crédito responsável, do minimo existencial e da proteção simplificada do luxo, princípios esses que respectivamente recaem sobre a oferta do crédito e prevenção, do tratamento da dívida e a identificação do abuso de uso da lei, promovendo o equilibrio juridico entre credor, devedor e o próprio credito concedido, com destaque a influência dos poderes constituídos e lei especiais, em especial o poder judiciário, que carrega o múnus da decisão sobre a proposta de conciliação e decisão sentencial e o Estatuto do Idoso.

Em um contexto bem simplificado, o consumidor em estado de superendividamento, caracterizado pela soma simples de suas dívidas e subtração de sua renda, que no caso o resto não seja suficiente a manutenção de sua dignidade humana pela ausência do minimo existencial, poderá, através de um advogado, requerer ao Juiz a instauração de um processo de repactuação de dividas, obrigando-se a uma audiência conciliatória com a presença de todos os credores de dividas previstas ( Art. 54-A incluído pela 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor).

Nessa audiência o consumidor apresenta uma proposta de plano de pagamento (Art. 104-A, § 4º incluído pela Lei 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor)  de até 5 (cinco) anos preservando seu minimo existencial, observando obrigatoriamente a aplicação dos princípios consagradas ao instituto, em especial a proteção simplificada ao luxo, em suma, não há como ser abrangido pela lei um determinado financiamento para aquisição de uma carro de luxo, um iate e assim por diante.

Havendo êxito na conciliação e aceito o plano apresentado, o Juiz homologa o respectivo plano que passará a ter eficácia executiva judicial com força de coisa julgada, caso contrário, ainda a pedido do consumidor, o juiz instaurará o PROCESSO DE SUPERENDIVIDAMENTO para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas apresentadas pelo consumidor.
 
Neste intento, o juiz poderá nomear um administrador, desde que isso não onere as partes e quanto ao plano compulsório esse assegurará aos credores, no mínimo, o valor da dívida principal devida, corrigida por indicies oficiais de preço, garantindo a primeira parcela no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, e o restante em parcelas mensais iguais e sucessivas.
 
Importante também deixar claro que o procedimento administrativo, mediado pelo poder público também está prevista na respectiva lei (Art. 104-C incluído pela Lei 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor), constituindo título executivo extrajudicial.
 
Por todo o exposto, ao consumidor surgiram duas novas fontes  legais de refúgio e de amparo ao superendividamento, o procedimento administrativo preceituado pelo Art. 104-C incluído pela Lei 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor e o processo judicial que no caso divide-se em dois importantes procedimentos, sendo que o segundo obriga-se a tentativa do primeiro, qual seja, o PROCEDIMENTO DE REPACTUAÇÃO DE DIVIDAS, ofertado pela inteligência do ato conciliatório judicial previsto no art. 104-A incluído pela Lei 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor e o PROCEDIMENTO DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO POR SUPERENDIVIDAMENTO PARA REVISÃO E INTEGRAÇÃO DOS CONTRATOS E REPACTUAÇÃO DAS DIVIDAS REMANESCENTES, estabelecido pelo Art. 104-B incluído pela Lei 14.181/2021 junto ao Código do Consumidor.
 
Em derradeiro, não pode-se deixar de citar os efeitos retroativos da respectiva lei, pois que, como afirmado por Pablo Stolze Gagliano, se por um lado, não pode a lei nova atingir a validade dos negócios juridicos já constituídos, por outro, se os “efeitos” do ato penetrarem o âmbito da vigência da nova lei, deverão se subordinar aos seus preceitos, ou seja, aspectos referentes, pôr à validade (nulidade) de um contrato celebrado sob os mandamentos normativos da lei em vigor na época de sua contratação, somente à esta lei submeterá, no entanto, a sua executoriedade se submeterá a partir de então as normas da nova lei em vigor. Em resumo, a lei antiga garante a validade contratual, enquanto a lei nova garante o curso da eficácia de sua executoriedade.
Não é demais deixar claro que o cidadão que se considerar superendividado, deverá consultar um Advogado para apurar seu endividamento e este identificar se há a existência dos pressupostos previstos na lei para requerimento do processo judicial por superendividamento, ou se for o caso, partir para um simples acordo extrajudicial com seus credores, pois que além de identificar os pressupostos, será necessário montar em conjunto com o consumidor um plano de pagamento que será submetido à apreciação judicial e dos credores ali envolvidos, e por estes, essencialmente ser aprovado.

Finalizando, sem sombra de dúvidas, a LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO, ou parafraseando, A LEI DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA PESSOA FÍSICA, vem positivar aquilo que até mesmo muitas instituições financeiras, cartões de crédito, lojas de departamentos com crediário próprio vem promovendo no mercado, qual seja, a conscientização do cliente quanto ao princípio do crédito responsável, além de regulamentar aquilo já admitido no ordenamento juridico através de nossa Carta Magna no que diz respeito ao tratamento digno do consumidor pelo princípio da dignidade humana e do minimo existencial.
 
Eis uma lei espetacular que inaugura uma nova fase na aplicação do festejado Código do Consumidor que este ano celebra 31 anos de promulgação.
 
Moacir José Outeiro Pinto
Advogado – Professor Universitário e Palestrante
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