O
Olhar Jurídico conversou com a juíza Amini Haddad, titular da Vara Especializada de Execução Fiscal de Cuiabá e cotada como nome para preencher a vaga deixada por Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). Com currículo que dispensa comentários, a magistrada falou sobre representatividade, realidades comunitárias e a importância da defesa pelos direitos humanos. Para ela, a Corte suprema deve ter “a cara da sociedade”. Confira abaixo a entrevista completa que Amini concedeu à reportagem.
Leia mais
“A cara da corte tem que ser a cara da sociedade”: Amini Haddad reforça atuação da Justiça a partir de realidades comunitárias
Como que foi a experiência de atuar com a ministra Rosa Weber no Conselho Nacional de Justiça, quais aprendizados tirou e isso de alguma forma influenciou na sua pretensão ao STF?
Os aprendizados foram muitos, a exemplo de se ter uma visão ampla das circunstâncias que atestam prioridades no delineamento de Políticas Judiciárias Nacionais. A percepção de toda a magistratura e competências à jurisdição foram preciosos para a proposição de soluções, desenvolvimento de temáticas prioritárias, construção de minutas de resoluções aptas para atender às necessidades que resultariam na melhoria do acesso à justiça e na efetiva projeção pragmática dos Direitos Humanos. Quanto à pretensão ao STF, em verdade, fui surpreendida, em 2021, pela apresentação do meu nome, conforme ação integrada do Movimento Global Virada Feminina, à vaga aberta pela aposentadoria do ministro Marco Aurélio. Ou seja, isso aconteceu bem antes da minha convocação para trabalhar em Brasília, na gestão da atuante ministra Rosa Weber. Apesar do nome vir sendo apresentado de forma reiterada, por várias instituições públicas, entendo que se trata de algo mais simbólico. As pessoas estão cada vez mais conscientes da imprescindibilidade do valor da equidade. E sempre dirigi trabalhos nesse sentido: na jurisdição e na academia. Sempre procurei atuar com compromisso e dedicação, em todos os espaços que me foram autorizados.
A sua atuação na magistratura resultou na defesa do seu nome por diversas instituições caso ocorra o convite para o STF, você vai aceitar?
Para mim é uma grande honra ter sido lembrada, citada. Não temos o comando da realidade do mundo e nem das possibilidades de onde nós vamos estar amanhã. Mas, em qualquer ambiente que eu estiver eu farei o meu melhor. Para mim sempre é uma honra acrescer, sempre é uma honra trabalhar em nome daquilo que eu acredito: equidade. Em todos os espaços. Estou há 25 anos como juíza (há muito tempo). Tenho 49 anos. Também contribuo muito na academia, na formação educacional universitária e das escolas da magistratura e do Ministério Público. O que penso, escrevo. Isso comumente se torna livro. Unir pontes do conhecimento e nas realidades sociais, para estruturar a argumentação, é imprescindível à compreensão da vida, da humanidade. Com esses aspectos percebemos campos do indivíduo e do coletivo em suas projeções. Isso é fundamental quando realizamos valores, direitos fundamentais. E me questiono sempre. Qual seria o meu espaço? O que me é legítimo no sistema? Em qualquer ambiente que eu estiver, se eu estiver no Tribunal de Justiça, como desembargadora (e será uma honra!), vou me dedicar, vou somar. Quero contribuir. Isso, para mim, é missão. Meu conceito de felicidade.
O possível preenchimento da vaga foi inesperado ou sempre foi almejado?
Nunca tinha pensado um dia compor o STF. Foi realmente uma surpresa a apresentação pelo Movimento Global Virada Feminina, com apoio de outros movimentos sociais. Mas, sempre quis chegar à Desembargadora do meu Tribunal. Servir à Justiça, isso sempre me pareceu mais concreto, mais possível. E sonho... que seja. Sempre irei me empenhar. Na jurisdição, na academia, na produção de pesquisa, na realização de projetos. Sempre segui uma ordem discursiva importante: Primeiro: a análise dos problemas da comunidade. Ademais, sempre pensei o Judiciário como uma forma de perceber os problemas da humanidade. Segundo: sempre anotei dados e estatísticas da jurisdição desenvolvida. Eu acredito muito em mapas informativos. Então eu consigo colher importantes catálogos sobre a comunidade, bairros, incidência de maior violência em determinados locais, da suscetibilidade em situações específicas, das estruturas escolares, etc. Há qualidade e quantitativos importantes nesses dados levados pelo Judiciário. Posso citar um exemplo. Quando comecei minha atividade jurisdicional na comarca de Arenápolis, em 1999, eu procurei levantar informes das realidades. Tomei a iniciativa, até tirei dinheiro do meu bolso para comprar um imóvel que pudesse acolher mulheres vítimas de violência doméstica, em decorrência dos dados locais que apontavam essa necessidade. Foi o primeiro lar provisório, em 99. Consegui adquirir o local e fiz a doação à prefeitura, com a reforma do local pelos presos (benefício de diminuição da pena). Assembleia Legislativa acabou reconhecendo, participando, fez homenagens que registram essa iniciativa. Não tínhamos a Lei Maria da Penha ainda.
Ademais, sempre pensei o Judiciário como uma forma de perceber os problemas da humanidade
O fato de o STF ser grau máximo da Justiça no país intimida quem não é da área do direito. Você acha que, caso seja convidada, para se tornar membro da Corte, conseguirá estabelecer essa ligação comunitária que sempre fez?
Sim. Acredito nisso como parte do valor Justiça. E é uma visão contemporânea. Temos muitas mudanças legislativas que apontam para esse papel do STF. Temos audiências públicas para temas complexos. Tivemos majoração do amicus curiae (ampliação do rol de interessados), para elastecer a legitimidade de um julgamento e fazer este mais participativo, mais democrático. Fala-se em congruência das decisões em formato de precedentes (normatividade concreta projetada) à igual dinâmica de acesso à justiça. Essa visão integrativa do direito, dos valores da justiça, são realidades muito evidentes, dentro dos discursos sobre a inafastabilidade da apreciação pelo magistrado, do valor justiça em si. Há uma dimensão comunitária a ser compreendida. Delimitações concretas nos direitos fundamentais, nos Direitos Humanos.
Há um apelo popular para que o presidente Lula nomeie uma mulher, sobretudo uma mulher negra. Ainda não há um veredito final. Para você, é importante que essa vaga seja preenchida por uma mulher negra?
Acredito nos movimentos de legitimidade. É inaceitável um retrocesso. Temos muitas mulheres capacitadas e acredito que a resposta do melhor nome deve sempre mapear histórico, preparo, compromisso e resultados. Logicamente que a representatividade é um importante norte. Precisamos de representatividades femininas, sejam indígenas, negras, brancas ou pardas. Precisamos de mulheres. Isso é consciência democrática. Isso é observar um dever de Estado. Não podemos desconsiderar as expressões sociais. A cara da corte tem que ser a cara da sociedade. Não podemos falar de justiça a partir de monólogos culturais. É muito importante que as pessoas sejam percebidas no ambiente decisório. As mulheres são 52% da população brasileira. O que seria democracia? Qual é o seu contexto simbólico? Então, acredito que a vaga tem que ser destinada ao perfil de representatividade social de mulheres, sem desmerecer a história nessa legitimação (notável saber jurídico e conduta ilibada). Isso significa legitimidade da indicação (capacidade, trabalho, formação, vocação, missão).
Você tem uma proximidade com a ministra Cida Gonçalves (Mulheres), inclusive já trabalharam juntas na elaboração da Lei Maria da Penha, de projetos nacionais. Crê nessa possibilidade de ela ser escolhida?
Eu acredito muito em todo o perfil de desenvolvimento da história de cada pessoa que atua em planos simbólicos de realização de políticas públicas e de políticas de Estado. Eu tive a oportunidade de trabalhar com a ministra Aparecida Gonçalves. É um grande nome. Tem história. Tem trabalho e compromisso sólido com a pauta da equidade. Ademais, o seu nome não está alicerçado em grupos temáticos. Por mais que se entenda a importância de se trazer um pensamento intersetorial multicultural de realidades sociais (exemplo do enfoque dado pelo pensador Will Kymlicka). O que querido dizer é que a ministra é uma profissional com visão de mundo, realidade social, compromisso público. Tenho orgulho de ter trabalhado com ela, inclusive na época da Ministra Nilcea Freire, então primeira ministra nessa pasta (mulheres), do Governo Federal. Pensamos projetos, delimitamos ações compartilhadas. Foi uma experiência grandiosa para a minha vida. Foi uma honra estar com ambas (Cida Gonçalves e Nilcea Freire) e ter contribuído para tantas ações públicas e projetos sociais pró-equidade, a exemplo da redação da Lei Maria da Penha, dentre outras políticas legislativas, executivas e judiciárias.
A atuação do STF nesses últimos anos tem sido questionada. Inclusive, tendo sido a Corte acusada de usurpar o poder do Congresso e de legislar sobre temas que tem gerado polêmica, como é o caso do aborto, legalização das drogas e demarcação de terras indígenas. Como avalia a atuação da Corte nesses temas que são tão sensíveis e polêmicas? Enxerga um avanço no limite da atuação do STF nessas questões?
Precisamos perguntar as razões de o Supremo ter sido chamado para se pronunciar nesses casos. O STF não se pronuncia, exceto quando demandado. O STF se manifesta quando há problemática social a ser percebida. Pode o STF deixar de responder à população? Precisamos entender as problemáticas envolvidas. Há um Poder Judiciário. A este compete dizer o direito, segundo limites e princípios constitucionalmente estabelecidos, inclusive pelos Diplomas Internacionais de Direitos Humanos. Não se trata apenas de uma normatividade local. O Brasil se comprometeu internacionalmente. O acesso à justiça é elementar no Estado de Direito. Isso significa que o Judiciário deverá trazer respostas quando diante de sofrimentos humanos, comunitários e sociais. Não se pode impor absurdos. Não se pode, por exemplo, impor uma gravidez a uma vítima de estupro. Isso equivale à tortura (infelizmente temos o projeto do Estatuto do Nascituro, nesse sentido). Não é possível viver tamanho absurdo de dor, de negar a existência, identidade, concepção existencial da pessoa que foi violentada sexualmente. Eu não conseguiria levar adiante uma gravidez dessa forma. Não posso exigir isso de absolutamente ninguém. Não se trata de uma análise de um dever mediano, possível. Mas, a conduta exige um altruísmo absurdo, abnegação dificílima de se alcançar. Nem Jesus exigiu de nós tamanho sacrifício. Então o Estado precisa dar prioridade à Lei do Minuto Seguinte. Pensar a dignificação das vítimas violentadas. Por vezes não enxergamos esses exemplos de forma nítida. Teríamos legitimidade para impor sofrimentos às pessoas que já se encontram em situações tão difíceis? Para além dessa reflexão, devemos considerar os casos específicos de lacunas legislativas que não conformam uma normatividade sistêmica. Isso é jurisdição: ação integrativa de valores dentro de uma ordem jurídica. Não podemos desconsiderar esses aspectos.
Você colaborou com a construção de um protocolo para uma atuação mais ferrenha do judiciário em termos ligados às mulheres. Como foi a elaboração? Quais foram os avanços? Quer dizer, como foi essa elaboração e quais são os avanços que entende serem necessários, esperados para a garantia dos direitos da mulher?
É muito importante que haja, sim, um aspecto de atendimento, de conceito de acesso à Justiça. Não é qualquer situação, não é qualquer contraditório que configura “o devido processo constitucionalmente assegurado.” Não se pode ofender as pessoas no ambiente judicial e tudo passar em branco. Não há legitimidade à degradação do humano. Se não pode ocorrer ofensas às pessoas, nem sequer no ambiente externo ao judiciário, por caracterizar responsabilidades, então como se poderia legitimar ofensas dentro do ambiente judicial? Logicamente, que isso não pode acontecer. Qual o limite do acesso à justiça? Nós tivemos situações que jamais deveriam ocorrer. A exemplo da que resultou na concepção da Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021). Um protocolo serve exatamente para que o judiciário, assim como todos os que atuam ou pertençam ao que concebemos como sistema de justiça (Defensoria Pública, Ministério Público, Delegacias, Advocacia), possam de fato colaborar para que haja preservação de direitos fundamentais. Então é necessário que todos ajam à preservação da dignidade humana. Não podemos jamais legitimar abusos. Esse é o norte. Aliás, condutas ofensivas podem até mesmo configurar possíveis crimes.
E os resultados têm sido esperados? Em relação a esse protocolo para julgamento e instrução na perspectiva de gênero?
Avançamos, sim. Sabemos que é um trabalho que precisa lidar com o ambiente cultural, as pessoas precisam entender, por exemplo, que o racismo não é uma medida de relação legítima, de expressão legítima. É crime. Essas situações precisam ser enfrentadas. Então, quando eu falo em protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, temos várias situações interrelacionadas (interseccionalidades), nos limites de análise à consagração do devido processo constitucionalmente assegurado. Temos situações específicas de vulnerabilidades entrelaçadas que precisam ser percebidas. Comumente as maiores vítimas são as meninas e as mulheres. Mulheres indígenas, negras, são individualizações de contextos que acrescem suscetibilidades (vítimas sistêmicas). Portanto, falar de protocolo com perspectiva de gênero, significa orientar-se a partir de diversos fatores de análise social. Não se trata tão-somente do gênero. Mas, de categorias de apropriações e hierarquizações fomentadas pelo patriarcado.
Sobre essas questões estatísticas, tem sido cada vez mais alarmante e aparente o crescimento de casos de violência que cominam em feminicídios em Mato Grosso, e também no país. Na sua avaliação pessoal e profissional, acredita que o judiciário tem conseguido atuar efetivamente no combate de violência contra a mulher?
O Judiciário de Mato Grosso tem sido modelo nesse sentido. Foi o primeiro estado a trazer unidades específicas de combate à violência contra a mulher. Mas isso não basta. Nós sabemos que é importante enfrentar os ambientes culturais de apropriação do feminino. Assim, centraliza-se como ação prioritária o ambiente educacional. É importante que haja, cada vez mais, políticas específicas que desenvolvam ações reflexivas no ambiente escolar. De igual forma, consagrar bons espaços dialógicos nas mídias, para habilitar mais e mais pessoas ao estabelecimento de relações mais sadias, mais equânimes, também é crucial. É importante que todos os ambientes, onde ocorram gastos públicos, tenham a divulgação de uma pauta pró-equidade, para que as pessoas passem a refletir sobre as relações que estruturam no dia a dia, a percepção de si mesmas e suas orientações sociais. Então, todos os ambientes serão convocados a pensar essa dimensão de inerência do humano: somos 50% da representação materna (feminina) e 50% da representação paterna (masculina). O padrão de igual dignidade é alicerce desde a formação genética. É algo da nossa natureza, do existencial. Falamos de uma política de Estado centrada nos direitos humanos.
Raio-X de Amini Haddad
Dra. Amini Haddad é Juíza de Direito do TJMT, aprovada em janeiro/99. Professora efetiva da UFMT. Coordenadora do Núcleo de Estudos Científicos sobre as Vulnerabilidades da Universidade Federal de Mato Grosso. Pós-Doutora em Direitos Sociais e Ações Coletivas pela Universidad Salamanca - Espanha. 2º. Doutoramento em Criminologia e Direito pela Universidade de Brasília – UNB. É Doutora em Direito Processual Civil pela PUC-SP (nota máxima, 10 com distinção). É Doutora em Direitos Humanos e Gênero pela Universidad Catolica de Santa Fe (nota máxima: 10, com distinção). É Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Graduada em Direito com a láurea universitária, com a 1a. Média Geral de toda a Instituição (UFMT). Membro da International Association of Women Judges-IAWJ, onde atua na formação das Magistradas estrangeiras. É membro da Academia Brasileira de Direito, cadeira 44. É membro da Academia Mato-grossense de Letras, cadeira 39. É membro da Academia Mato-grossense de Direito, cadeira 02, onde recentemente foi presidente (2021-2022). É membro da Academia de Magistrados, onde atuou como Presidente (2012-2014). Foi uma das redatoras do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Atuou na Construção da Lei Maria da Penha, no Congresso Nacional, com as Professoras Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, Dra. Leila Linhares, Dra. Silvia Pimentel e Dra. Heleieth Saffioti. Foi capacitadora nos Tribunais à Instalação das Varas de Combate à Violência contra a Mulher. Atuou como Juíza responsável pela mobilização nacional e internacional para acolhimento de Juízas e outras autoridades do Sistema de Justiça do Afeganistão, em ação inicialmente apresentada em conjunto com a Desembargadora Shelma Lombardi de Kato e Ministra Maria Elizabeth Rocha (STM), com posterior adesão de outras entidades nacionais e estrangeiras.